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AluCine – HALL’S OF FAME

AluCine – HALL’S OF FAME

Hall´s of Fame

Ela colocou os dedos na boca, tirou o Hall´s que chupava até então, desceu a mão, deslizando-o sobre a pele bem no meio do seu decote generoso e, com a outra mão, puxou a blusa pra frente e fez um movimento esfregando a bala no bico do seio esquerdo. Depois o trouxe de volta à boca e voltou a chupar. Seus lábios formaram um beijo que voou pelo ar e me encontrou, do outro lado do balcão. Era um balcão circular em que o garçom, preso ali no meio do círculo, dividia-se em muitos para desesperadamente dar conta dos inúmeros pedidos que chegavam para ele, com comandas levantadas, gritos e risadas. Eu estava exatamente na posição diametralmente oposta a ela.

Era sexta-feira e meu amigo, que era argentino, havia sugerido irmos tomar umas cervejas nesse local que ainda não conhecíamos, e que por sinal estava lotado. Era verão, morávamos em Nova York e trabalhávamos de contínuos no escritório de uma pequena construtora. Essa situação se repetia semana após semana: sempre que recebíamos o pagamento na sexta, saíamos e ele gastava absolutamente todo o dinheiro com bebidas, pagando rodadas, querendo alugar limousines para rodarmos a cidade com champagne, etc. Depois passava o resto da semana me pedindo dinheiro.

Os olhos semiabertos dela me fitavam de maneira extremamente sedutora. Virei para o meu amigo e indaguei se ele não teria um Hall´s, ou qualquer outra bala (sim, e bala aqui, nesse texto pelo menos, significa a inofensiva guloseima açucarada que você recebe de troco na padaria da esquina aí da sua casa). Ele não tinha, perguntei para um cara que estava ao meu lado contando alguma lorota para um bando de amigos ruidosos e ele, magicamente, tinha e me ofereceu também, vejam, um Hall´s. Eu prontamente agradeci e logo me virei lambendo a bala e fazendo o mesmo que a moça minutos atrás: olhando suavemente pra ela, fiz todo o trajeto a imitando, abrindo o botão da camisa para passar a bala no mamilo, e depois voltando até o beijo jogado no ar em sua direção.

Ela deu um sorrisinho e repetiu o gesto, aumentando a área de abrangência de onde passaria a balinha. Eu sempre repetindo e aumentando um pouco mais. Chegou ao ponto de eu quase simular tomar um banho de Hall´s, esfregando-o pelo corpo como se fosse um sabonete. Ela riu mais ainda. Estava se divertindo. Com o calor a bala deslizava suavemente seu melaço no suor antes de voltar à boca.

Atravessei arduamente a multidão e fui para o lado da garota. Falei algo e ela pareceu se espantar com a minha voz. Disse (em inglês):

– Nossa, eu estava intrigada. Não sabia dizer se você era um menino ou uma menina!

Eu respondi com aquele anorme clichê, mas que tem sua utilidade:

– Eu sou o que você quiser! – E lógico que acompanhado de uma piscadinha, porque não há clichê desse nível que seja completo sem uma piscadinha pra coroar a canastrice.

E nessa toada nos beijamos. Um beijo pegajoso pois já tínhamos nos untado em Hall´s o suficiente e nossos corpos grudavam como fita dupla face. Durante o beijo ouço um barulho, uma algazarra do outro lado do bar e olho de soslaio percebendo que uma pequena torcida havia se formado. Meu amigo argentino, o cara do Hall´s e seus amigos, agora batiam palmas e gritavam palavras de incentivo para nós. Ela puxou meu rosto e começamos a nos beijar de novo. O barulho foi aumentando e quando me atrevi a olhar, a torcida havia aumentado. Parecia que todo o bar agora era um grupo de incentivadores organizados esperando pelo desfecho de tão melado encontro.

E aqui entramos no filme. Que é posterior à situação que descrevo, pois nem sempre a vida imita a arte, o que podemos fazer? Por todo relato até então, o natural e mais óbvio seria nos lembrarmos de qualquer comédia adolescente em que um bando de jovens com os hormônios em alvoroço não têm mais nada na cabeça a não ser pensar 24 horas em sexo. Desde os clássicos Porky´s (1981) a American Pie (1999) entre muitos outros, mas miro em outro gênero totalmente: V/H/S (2012). V/H/S é um filme no estilo antologia que apresenta seis curtas de horror (contando com a história principal) oferecidas, claro, no formato de imagens que lembram as gravações de fitas de videocassete dos anos 80 e 90. Recebendo um lançamento moderado na época o longa dividiu opiniões, no entanto, servindo como cartão de visitas de muitos dos diretores que depois viriam a se tornar conhecidos do grande público e ter sucesso com filmes agraciados pela crítica em festivais de terror mundo afora. O foco é ainda mais fechado para esse caso em que cito e destaco então o último curta independente apresentado no filme: 10/31/98, dirigido por um coletivo de cineastas chamado Radio Silence.

No curta um grupo de amigos segue um convite para uma festa a fantasia e no meio do caminho acabam errando o endereço, chegando a uma casa aparentemente vazia. No clima de diversão e já bebendo, acham uma entrada para o interior da casa ainda pensando ser o local da festa. Começam a andar pelos cômodos e vão, cada vez mais, ouvindo vozes que parecem vir de algum lugar dentro da construção. Ao chegar no sótão se deparam com um grupo de pessoas praticando um exorcismo real em uma garota que está amarrada. Acreditando ser tudo parte de uma encenação, começam a gritar e imitar as palavras do exorcista, justamente como uma torcida imediatamente organizada em torno de uma situação qualquer. Óbvio que invadir um exorcismo real em um filme de terror não costuma acabar bem, mas no meu caso talvez as coisas dessem certo. Afinal, no meu caso era o contrário, o beijo estava bom e a noite prometia. Ela disse, sussurrando no meu ouvido:

– Gostaria de ir lá pra casa? Vou receber uma amiga hoje e podemos fazer algo a 3…

Sem nem ter ouvido essa última parte provocativa, a torcida urrava! Davam murros no balcão em comemoração e gritos tribais se abraçando. No entanto, notei que logo que ela soltou esse último convite e eu concordei em ir com ela, ela se desequilibrou e quase caiu do banco. Ajudei a apoiá-la. Com um aceno de mão para a platéia ensandecida fui saindo com ela e ouvindo os gritos selvagens no interior do bar, quando a porta se fechou. Na escada, já quase na rua, ela caiu novamente e eu a ajudei a levantar. Chegamos na rua e eu consegui chamar um táxi. Na hora de entrar no veículo ela novamente ela veio ao chão. Estava tremendamente bêbada e eu dessa vez tive trabalho para levantá-la. O taxista reclamava da demora e eu pedindo para ele esperar. Percebi, com o gosto amargo da realidade assomando na boca e substiuindo a doçura do Hall´s, que essa noite não teria o fim tão esperado. Confirmando que ela teria dinheiro pra pagar o táxi desisti e vi o carro amarelo partir sem mim, levando os sonhos de uma louca orgia pontual que se projetou tão imediata quanto volátil.

Girei o corpo e encarei a porta do bar com vontade de entrar ali novamente, mas sem coragem. Como eu iria encarar toda aquela torcida que havia vibrado por mim e minha succubus ébria? Fui caminhando vagarosamente para o metrô. Pensei inclusive na decepção do meu amigo, quando eu chegasse na segunda pela manhã e tivesse que relatar os sucessivos tombos dela e a minha desistência covarde.

E, de fato, logo cedo ele estava lá, esperando quando eu cheguei para o trabalho, vestia até uma camisa da seleção brasileira em homenagem ao meu “feito”. Eu teria que engolir o orgulho e exorcizar o meu medo de decepcionar as pessoas, tal qual o exorcismo do filme, e aprender que nem sempre oferecemos aquilo que se espera de nós.

Texto: Lupe Romero é atriz, musicista, performer e escritora.

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