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AluCine – O DIA DO ABRAÇO

o dia do abraço

AluCine – O DIA DO ABRAÇO

O Dia do Abraço

Havia uma presença, era assustadora e ficava na região dos fundos da casa, ou na cozinha, ou no banheiro. Aparentemente havia entrado pela porta do quintal, mas ninguém havia notado, só eu.

Eu era criança, por volta dos meus 7 anos, e havia sido deixada completamente sozinha em casa, ou, se havia mais pessoas, meus pais e minha irmã, o que eu não lembro, eles estavam totalmente indiferentes à minha existência ou a tudo o que se passava comigo. Da sala, eu podia sentir que a presença assustadora se aproximava cada vez mais.

Antes que ela aparecesse no corredor e me paralisasse de medo, corri para subir a escada do sobrado em direção ao andar de cima, ainda a tempo de olhar para trás e ver a sombra que crescia bem no limite da parede. Estranhamente naquele dia a escada parecia mais longa, mais alta, seus degraus maiores, meu corpo mais pesado, como se tudo contribuísse para dificultar minha fuga da entidade apavorante.

Senti, já no topo da escada, que o que quer que seja que estivesse me perseguindo, estava logo no meu encalço, e que seria uma questão de segundos até eu virar presa daquela pessoa, monstro ou espírito.

Num movimento rápido girei à esquerda e entrei voando no quarto que dividia naqueles tempos com a minha irmã. E assim que entrei empurrei correndo a porta atrás de mim, não sem antes um braço invadir o quarto e se interpor entre a porta e o batente de forma a impedir que eu conseguisse fechar a porta. Era um bracinho pequeno, algo cinza ou verde, parecia de uma pessoa pequena, talvez uma criança também, mas menor do que eu. Por mais que eu empurrasse, não conseguia fechar a porta e a pessoa do outro lado forçava sua entrada. Era forte, bem mais forte do que o tamanho daquele pequeno braço faria acreditar.

Enquanto empurrava, olhei pela fresta da porta entreaberta e vi… era um anão. Sua pele era bem desgastada e de uma cor não humana, o seu rosto, algo deformado, retorcido num sorriso aberto e sincero, buscava simpatia e, quem sabe, carinho. Dizia ele:

– Um abraço! Eu só quero um abraço! Ah, me da um abraço, vaí?! – enquanto fazia força para que eu cedesse e deixasse ele entrar.

O problema todo era que ele usava um “harness” (ou aqui em português, arreio, que eu obviamente não sabia que se chamava isso na época) parecido com o do He-Man: aquele “X” de metal na frente do peito. E bem no centro do “harness”, no centro do “X”, havia uma protuberante e enorme ponta de metal bem afiada. Era uma ponta como a de uma lança, presa ao adereço que ele carregada e que tinha o comprimento grande o suficiente para que, se ele realmente conseguisse me abraçar, atravessaria meu corpo, saindo a afiada e assustadora ponta pelas costas, enquanto eu permaneceria empalada nesse mórbido contato inocente e afetuoso.

– Poxa, você não vai me abraçar?! Eu sou seu amigo! Gosto tanto de você! – continuava insistindo ele. Agora alternando entre o doce sorriso e uma cara magoada de choro. E eu só conseguia olhar o gigantesco espinho que ele ostentava à frente do tórax.

Nem preciso dizer que acordei numa poça do meu próprio suor e gritando, com meus pais ao lado perguntando o que eu estava sentindo… E eu expliquei:

– O anão cinza quer me abraçar! O anão!

Fiz meu pai andar pela casa comigo acendendo as luzes para eu ver que não tinha nenhum anão demoníaco carente escondido pela casa, assim como testar a porta dos fundos para ver se realmente estava trancada.

Não sei quanto tempo depois assisti ao terror (bem mediano) “Troll” (1988), que aqui ainda ganhou o péssimo subtítulo “O Mundo do Espanto” e a tal criatura título acabou emprestando seu rosto para o anão do meu sonho. Minha falha memória não conseguia lembrar do rosto do anão, a não ser a terrível experiência traumática e o implacável espeto até eu assistir a essa produção em que uma garotinha é sequestrada pelo Troll em questão, enquanto ele toma a forma dela para aterrorizar os moradores de um prédio. O filme ainda gerou uma sequência não oficial, muito pior, e por isso muito mais divertida, que vive na disputa do título de pior filme do mundo e chamado, claro, “Troll 2”. Quanto a “Troll”, o primeiro, nada é muito digno de nota a não ser o fato de ser um dos primeiros trabalhos da ainda desconhecida na época Julia Louis-Dreyfus (a Elaine, do seriado Seinfeld) e ter entre seus personagens principais, dois deles, pai e filho, os chamados Harry Potter Sr. e Harry Potter Jr., gerando uma acusação de apropriação dos produtores contra J. K. Rowling, autora dos famosos livros do bruxo adolescente. Ah… e no meu caso, o fato digno de nota foi doar as feições da criatura para o amável e aterrorizante anão do pesadelo que relatei.

Anos depois eu quis adaptar a história, ou pelo menos a personagem, para um conto, ou um curta, e, nessa ocasião, comecei a me lembrar do que era ser criança nesse sobrado na periferia de Guarulhos. Numa rua sem saída de terra e passar as tardes a brincar, sozinha, quando recordei que a moça que ficava em casa à tarde, fazendo a limpeza e olhando eu e minha irmã enquanto meus pais trabalhavam, não tirava o ouvido do rádio. Eram programas extremamente violentos e sanguinários, que escancaravam aquela sessão policial mais abjeta. Verdadeiro “espirra-sangue”. E, por mais que eu não me importasse, não conseguia deixar de ouvir as histórias que ecoavam pela casa. Em várias ocasiões, nas histórias narradas, o mal era causado por alguém da família ou próximo da vítima. Talvez por isso o anão que me causaria o mal no pesadelo era alguém que só queria um contato, como um abraço. Não terminei a adaptação. O máximo que já fiz, foi contar sobre ele aqui, hoje.

Texto: Lupe Romero é atriz, musicista, performer e escritora.
Lupe Romero

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