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AluCine – A MALDIÇÃO DO BAGRE

Corredor

AluCine – A MALDIÇÃO DO BAGRE

A Maldição do Bagre

Acordava com uma vontade urgente de ir ao banheiro. Mas o problema era a coragem. Como encontrá-la para enfrentar o trajeto e retornar em segurança para a cama? Isso acontecia na época em que eu dormia na casa de uma tia minha. A casa possuía apenas um quarto, então dormíamos eu, minha tia e meus dois primos todos juntos. E quando a vontade passava de urgente para urgentíssima eu, que já era uma criança crescida, portanto a vergonha de acabar fazendo xixi na cama vencia o pavor da situação, descia do beliche e pensava no caminho que teria pela frente: descer a escura e estreita escada curva, atravessar a cozinha, abrir a porta, andar todo o corredor também em trevas e entrar no banheiro. E depois refazer todo o trajeto de volta.

No entanto, o grande e assustador problema era a escada. Ela fazia uma curva e nos colocava de cara com uma parede alta em que, bem no meio, ficava pendurada uma pintura de forma a encarar todos que desciam seus degraus. A mesma pintura que toda a família apontava e dizia pra mim:

– Parece tanto com você!

E um dos meus primos, sempre ele, aproveitava para acrescentar, quando minha tia não estava perto:

– Parece mesmo, pena que essa pintura é amaldiçoada…

E ante à minha cara de espanto, emendava:

– Sim! Não percebe que é o diabo devorando aquele menino? Por isso que ele está chorando.
– Não acredito!
– Não? Então olha! – e ele virava a pintura de lado e dizia ser a boca do diabo a gola da blusa do menino.

Então eu descia correndo evitando olhar para o menino que chora e uma ou duas vezes caí da escada de tanto desespero. A escadaria oprimia com paredes dos dois lados e um pé direito super alto parecendo uma armadilha que levava direto para a bocarra do satanás que me devorava. Sim, eu, o menino da pintura.

O curioso é que meu primo estava certo. Não quanto ao diabo, mas quanto à fama de que aquele quadro era amaldiçoado.

A história é que uma série de pinturas retratando crianças chorando fizeram muito sucesso e foram vendidas massivamente durante as décadas de 50 a 70, principalmente. As pinturas, retratando tanto meninos quanto meninas sempre chorando, traziam a assinatura de um tal Giovanni Bragolin, que depois, diz-se ter sido um dos pseudônimos do verdadeiro artista por trás das obras, o pintor espanhol Bruno Amadio. O boato da maldição começou, ou pelo menos se espalhou, quando o jornal inglês The Sun, na década de 80, publicou uma matéria de um incêndio que havia destruído completamente a residência de um casal. Tudo virara cinzas, exceto uma pintura de um garoto chorando, que havia milagrosamente sobrevivido. Ao que o bombeiro que atendeu ao chamado exclamou:

– Oh, não! Outra vez! – dando a entender que outras pinturas haviam sido encontradas intactas em outros incêndios.

E com isso o jornal passou a explorar a história em suas notícias com manchetes como “A Maldição do Garoto que Chora Ataca Novamente”, para relatar um outro incêndio com um suposto achado e conclusão parecidos. A partir daí a história se espalhou com pessoas alegando doenças e mortes na família por causa das pinturas. Com incêndios (“mais de 50!”, diziam) sendo atribuídos à presença dos quadros nas casas, restaurantes e comércios em geral que ousavam pendurá-los na parede.

Chegou-se ao ponto de o jornal pedir para que seus leitores enviassem as pinturas para a redação para destruí-las e assim acabar com a maldição. Fato que aparentemente ocorreu em 1985 com uma fogueira reunindo milhares de quadros recebidos pelos editores do The Sun.

E eu talvez nunca soubesse de nada disso ou mesmo lembrasse apenas ocasionalmente da pintura na escadaria que tanto me assustou se não tivesse assistido recentemente a “The Curse of The Crying Boy” (2019). O curta, disponível no YouTube, pega justamente carona nessa pintura de história riquíssima e estabelece um bom clima sombrio inicial. Nele uma mãe fica preocupada que o tal garoto do quadro possa fazer algum mal ao seu bebê, Como é uma produção de duração extremamente curta não se explora nenhum dos aspectos históricos na narrativa. O que deixa também a questão de por que ainda não fizeram um longa sobre uma história tão popularmente conhecida?

De volta à escada, durante uma festa de família na casa da minha tia, pedi para um adulto qualquer que passava por perto se poderia retirar o quadro da parede e me entregar. E, olhando melhor, aquela boca do diabo perecia muito mais com a boca de… um bagre! E, ainda assim, eu imaginava: “Uau! O diabo realmente não é nada daquilo que a gente pensa, ele parece mais com um peixe, isso sim!” Também me espantava o fato de somente a cabeça do menino estar de fora, e me lembrava da cobra que havia visto na TV, com seu corpo alargado por ter devorado um bezerro inteiro. Inteiro exceto pela cabeça, que ficava pra fora, enquanto o restante do corpo lentamente desaparecia. Pensava quanto tempo levaria o diabo para consumir o corpo do menino enquanto segurava nos lábios de bagre aquela cabeça chorosa como uma chupeta macabra em exibição.

O tempo passou e minha tia se mudou. O quadro, eu nunca mais o vi, e talvez um dia pergunte pra tia, agora que lembrei, que fim levou. Juro que se encontrar farei a proposta de que deixem eu ficar com ele e o pendurar em casa. Será bom um reencontro com o meu ex aparente sósia e seu pisciforme companheiro das profundezas e oferecer para eles um local de descanso, em destaque, bem no meio da parede da sala.

Texto: Lupe Romero é atriz, musicista, performer e escritora.
Lupe Romero

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