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E TODO CAMINHO DEU NO MAR

Mar da Bahia

E TODO CAMINHO DEU NO MAR

A Música, o Luzeiro e o Tempo – por Mirianês Zabot

Dirigido por Henrique Dantas e lançado em 2019, – pela Hamaca Filmes com co-produção do Canal Curta! -, o premiado documentário “Dorivando Saravá, O Preto Que Virou Mar”, de forma delicada e poética, apresenta a vida e obra de Dorival Caymmi (1914-2008), tendo sua negritude como o fio condutor da narrativa.

Como colunista, editora musical no Cine.RG e cantora, assisti ao documentário a convite do “In-Edit Brasil – Festival Internacional do Documentário Musical”, – evento que nasceu em Barcelona e atualmente é realizado em diversos países -, neste ano, sua 12º edição chega ao público brasileiro em versão online, entre os dias 9 e 20 de setembro.

Já apontando a direção do navegar, – e tão envolvente quanto o canto de Janaína -, “Vamos Chamar o Vento” (1959) é a canção de Caymmi que abre o filme documental:

“Quem ouve desde menino

Aprende a acreditar Que o vento sopra o destino

Pelos caminhos do mar” Caminhos do Mar (Dorival Caymmi)

Depoimentos em áudio, do próprio compositor, costuram o roteiro do filme. Caymmi explica como a espiritualidade, – aguçada pela sua dedicada vivência no Candomblé -, lhe pôs em sintonia com a natureza e com sua terra. Comenta ainda sobre a sua forma de assimilar e cumprir a missão de fé que lhe fora confiada. A gravação de “Canto de Nanã”, na qual Caymmi é acompanhado somente por tambores africanos e um coro de vozes, ilustra a tocante cena.

Ao lado dos amigos Jorge Amado (1912-2001), – também baiano -, e dos estrangeiros naturalizados Carybé (1911-97) e Pierre Verger (1902-96), Caymmi mostrou ao Brasil e ao mundo toda a riqueza cultural da Bahia, valorizando os Orixás, os trabalhadores do mar, as lendas e a descendência africana. Tornando-se inspiração para sucessivas gerações de músicos. No documentário, artistas como Gilberto Gil, Moraes Moreira, Tom Zé, João Donato, Adriana Calcanhotto, Letieres Leite, Marina De La Riva, Tiganá Santana, BNegão, Lucas Santtana e Mateus Aleluia, o produtor musical Roberto Sant’Ana e ainda, as filhas de Jorge Amado, – Paloma Amado -, e de Carybé, – Solange Bernabó -, prestam a devida reverência e relembram histórias, emocionantes e hilárias, vividas ao lado do mestre Caymmi.

Caymmi cantou muito mais o trabalho do que a sua lendária preguiça, como bem descreve na canção “Milagre”, – no longa-metragem, interpretada por Gil -. Ele era um operário da música, lapidava cada frase de uma nova composição por meses ou até anos. Explicando esse assunto, certa vez disse: “Vou compondo devagar e sempre, tu sabes como é, música com pressa é aquela droga que tem às pampas, sobrando por aí”. Ele respeitava o ócio criativo. Sabia se relacionar com o tempo da criação, com o tempo espiritual e com o bem-viver, em contrapondo ao ritmo demasiadamente acelerado e agressivo do capitalismo. Sagaz que era, Caymmi até fez um bom uso daquela sua fama de preguiçoso: “Eu passei a fazer do tipo preguiçoso uma arma. Pra evitar chatice eu digo que não faço porque tô com uma preguiça!”. Aliás, Caymmi também era pintor, mas

dedicado como ele só, julgava não ter tempo suficiente para doar-se como gostaria a mais esse fazer artístico.

Caymmi tinha um grande poder de síntese em sua composição, com maestria, compilava em uma única canção o que há de mais essencial na música. Tudo era carinhosamente maturado: a letra, levada ao violão, interpretação vocal, pulsação e arranjos. A irretocável estrutura melodia e harmônica de suas músicas traduzia também o claro entendimento que detinha sobre o viver. Usava-se do mar, como figura de linguagem, para representar a infinitude e renovação da vida:

“Andei por andar, andei E todo caminho deu no mar”

Não só o artista é apresentando no longa, mas também o homem Dorival, calmo, afetuoso, ritualístico, organizado, metódico, devotado à arte, aos amigos e à natureza, – já que ele tinha sensibilidade suficiente para perceber a representação da divindade dos Orixás, nas águas, nas plantas e nos animais -. A leitura de uma deliciosa e jocosa carta de Caymmi, endereçada ao parceiro Jorge Amado, nos leva a mergulhar cada vez mais em seu jeito de ser e na forma como ele via seu ofício.

Em “A Lenda do Abaeté”, gravação de 1959, Caymmi traz histórias de assombração, que ele ouvira quando criança. Após mudar-se para o Rio de Janeiro, alimentava uma saudade da Bahia de outrora, da terra de sua meninice, na qual, – em pensamentos ou por meio de suas canções -, ainda encontrava refúgio.

Apesar de ter tido um rápido envolvimento partidário, Dorival, não nutria grandes interesses pela política ou por ideologias, porém sua contribuição para a sociedade foi muito além. Mais do que um singular compositor, violonista e cantor, Caymmi foi também um revolucionário, – que com leveza, classe e altivez -, conseguiu a proeza de fazer sucesso cantando temáticas de afrodescendência e Orixás, enquanto, no Rio de Janeiro, Terreiros de Candomblé eram fechados pela polícia. Ele, – que por ser preto, teve sua vaga na Academia Baiana de Letras rejeitada, antes mesmo de receber o convite formal -, legou uma obra que nos leva a refletir sobre as agruras advindas da diáspora negra e sobre a importância de valorizarmos e entendermos a contribuição de todos os povos formadores do Brasil, sejam eles, indígenas, africanos ou europeus. Sobre tais questões Caymmi e seu parceiro Jorge Amado, já nos alertavam em “Retirantes (Vida de Negro)”, – gravação que tem extraordinário arranjo, assinado por Waltel Branco para a abertura da novela “A Escrava Isaura”, exibida pela Rede Globo em 1976 -. A partir dessa época, o artista passa a se colocar cada vez mais como personagem de suas próprias canções, valorizando suas tradições e negritude, aparecendo em fotos, por exemplo, usando colares de contas do Candomblé.

A cantiga “Oração de Mãe Menininha” embala o depoimento de Caymmi, no qual se define como um admirador das mulheres, entendendo-as como pessoas que exercem seus trabalhos no Candomblé e em outras esferas de suas vidas, com eficiência, beleza e uma cândida autoridade. Várias das músicas que compôs foram para mulheres, sempre tratando-as com adoração e carinho. Todas elas representavam sua amada companheira Stella Maris, – que faleceu apenas dez dias antes de Dorival, sem que ele soubesse de sua morte -.

Diversas outras músicas são mencionadas ou cantadas pelos artistas convidados do filme, tais como, as dolentes “É Doce Morrer no Mar”, – com Jorge Amado -, “A Jangada Voltou Só e “Noite de Temporal”, ambas de 1959, e ainda “Sargaço Mar”, de 1985. Essas letras mostram a relação de Caymmi como a morte, entendendo-a como uma transmutação ou recomeço. Para ele, a certeza do fim era um estímulo para fazer a vida valer. O mesmo homem que tanto cantou os encantos e mistérios do mar, também

guardava um imenso respeito pelo Reino de Iemanjá: ele só adentrava ao mar, até o ponto em que a água batesse, no máximo, em seus joelhos.

Envolvente, bonito e sensível, o filme documental “Dorivando Saravá, O Preto Que Virou Mar”, é capaz de ampliar nossa visão de mundo, tirar nosso ar e elevar nossa alma, através de imagens primorosamente selecionas e de inteligentes recortes da magnífica e lúcida obra de Dorival Caymmi, – artista que foi um divisor de águas para a música e para a cultura brasileira -. Um gênio que eternizou sua arte orientando-se pela bússola da delicadeza, ternura, dedicação e do profundo respeito pelas pessoas, pela natureza e pela vida. Caymmi encantou-se! Dorival virou mar!

Por Mirianês Zabot * Texto publicado em 20/09/20 na coluna “Ouvimos”, do Cine.RG

[ Site: www.mirianeszabot.com.br | Instagram: @mirianeszabot ] Facebook: Mirianês ZabotOficial

* Confira a música “É Doce Morrer no Mar”, nas vozes de MIRIANÊS ZABOT e OSWALDO BOSBAH, no show Saravá, Caymmi!: https://youtu.be/dmsOjY8gp2I

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