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AluCine – PRECISAMOS FALAR SOBRE A LUPE

Billy

AluCine – PRECISAMOS FALAR SOBRE A LUPE

A chave fez um barulho na fechadura. A maçaneta se moveu e a porta se abriu. Tarde demais…

– Minha nossa! Mas o que é isso que você está assistindo?

Minha mãe gritou com a porta ainda aberta atrás dela. Da posição em que estava, ela vira perfeitamente o momento em que Billy Chapman, o protagonista vestido de Papai Noel (geralmente com um machado nas mãos), ergue a pobre e seminua Denise nos braços e empala seu corpo suspenso nos chifres de uma cabeça de veado pendurada na parede da sala. A mais memorável cena de morte de “Natal Sangrento” (1984), mas minha mãe pelo jeito não havia apreciado nada a beleza plástica do momento ou os esforços da equipe de efeitos práticos. Não me admira saber, hoje, que o filme na época de seu lançamento ficou apenas uma semana em cartaz nos cinemas devido à fúria que despertou nos pais. Minha mãe certamente estaria entre esses pais:

– Pode parar já com isso!
– Mas, mãe…
– Desliga já! É isso que você anda vendo à tarde aqui? Mas que horror! Eu preciso falar com o seu pai. Nós vamos mudar esses hábitos. Esse tipo de coisa não faz bem pra uma criança.

Era um absurdo. De forma totalmente compreensível, no filme Billy só estava se vingando dos traumas que sofreu na infância, dando vazão aos demônios que atormentavam sua mente por tantos anos. Mas meu argumento altamente psicanalítico, se eu conseguisse expressá-lo na época, ainda assim não teria funcionado. Tive que parar o filme. Eu sabia que um dia isso poderia acontecer. Havia me atrasado na minha sessão diária particular de cinema nesse dia. Sempre eu assistia aos filmes antes de meus pais chegarem em casa, assim eles nunca sabiam o que eu tinha alugado. Eles nem prestavam atenção… até esse dia.

Portanto, relato aqui que nesta terceira parte desta saga do videocassete na minha vida eu tive que abandonar meu amor por filmes de terror por um tempo.

O processo, no entanto, continuava o mesmo. Sempre que eu saía da escola, na hora do almoço, corria para a locadora e trazia algum filme. No dia seguinte, no mesmo horário, eu fazia o mesmo caminho, devolvendo este filme e alugando outro, de forma que sempre ficava com um filme em casa todas as tardes. A diferença, depois do episódio envolvendo Denise com seus seios expostos espetada pelo Papai Noel e minha mãe, é que de agora em diante toda noite na hora em que eu pedisse o dinheiro para devolver o filme na locadora eu era obrigada a mostrar o que eu havia alugado. Não mais “Acampamento Sinistro” (1983), “Ratos – A Noite do Terror” (1983) ou “TerrorVision” (1986). Ao invés disso levava para casa um “Comando Para Matar” (1985), “Remo – Desarmado e Perigoso” (1985) ou “Keruak, O Exterminador de Aço” (1986). Aparentemente, pelo que se vê, na cabeça dos pais é totalmente inconcebível e inaceitável matar algumas pessoas num acampamento com um facão ou machado, ao passo que não causa nenhum alarde ou furor matar várias pessoas de uma vez com uma metralhadora ou granada.

O tempo foi passando, passando… e eis que um dia fui visitar um amigo da escola durante à tarde e, brincando de desenhar na mesa da sua sala, eu lembrei dos desenhos muito maneiros que Billy fazia no nosso já citado “Natal Sangrento”: pessoas decepadas, mutiladas, decapitadas, armas ensanguentadas, um Papai Noel ameaçador no centro da folha… fiz algo parecido, imitando os desenhos que eu tanto havia gostado no filme.

Acontece que a mãe do garoto viu e ficou apavorada! Quando meus pais chegaram à noite para me buscar ela teve uma conversa com eles. Psicóloga, ela havia interpretado os desenhos como um sinal de que eu sofria de um distúrbio e frustração muito severos e também de uma grave inclinação para violência, inclusive culminando em ódio contra meus próprios pais. Era recomendável acompanhamento psicológico ou eles é quem corriam maior perigo dentro de casa! Eu era um monstro mirim e não sabia! Havia me tornado, na cabeça dela, justamente um daqueles meus heróis de tantos e tantos filmes. Michael Myers ainda criança havia matado sua irmã mais velha. Jason, também criança, salta do lago para puxar a única sobrevivente do massacre para as profundezas. Qual seria o meu crime?

E, numa mudança radical das expectativas, felizmente, para mim, a história que a mulher havia contado e suas previsões sobre mim e minha personalidade eram tão absurdas que tiveram justamente o resultado oposto. Meus pais ficaram tão indignados e ultrajados com alguém imaginando que eu fosse algum serial killer em potencial que acharam que tudo não passava de uma grande babaquice e que eu deveria assistir o que bem entendesse e gostasse. A partir desse dia a situação não só voltou ao normal como voltou melhor. Não era mais necessário esconder os filmes que eu alugava. Quase corri desesperadamente na primeira oportunidade que tive e abracei a minha prateleira preferida, não sem antes pedir perdão pela ausência e explicar que os motivos do rompimento temporário estavam além do meu alcance.

Quanto à mãe do meu amigo, não tenho palavras para agradecer a ajuda que ela me deu ao justamente me considerar um monstro em construção. Uma bomba relógio de violência e fúria. Justamente eu que com o passar dos anos me mostrei esse poço de sensatez e doçura. Mas todo mundo pode errar e eu não guardo mágoas, se a encontrasse entregaria em agradecimento o desenho que fiz dela. Um desenho muito especial, igualzinho àqueles que ela havia adorado…

Texto: Lupe Romero é atriz, musicista, performer e escritora.
Lupe Romero

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