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AluCine

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O Austin Powers da Zona Leste

O que descreve de forma clara a nossa paixão pelo cinema é que, definitivamente, não conseguiríamos imaginar as nossas vidas sem ele. E não digo sobre pensar em como seria um martírio viver sem assistir a mais nenhum filme e sim, em como seria impossível viver como vivemos sem que os filmes não nos tivessem moldado.

Nós nos portamos tal como aqueles personagens que assistimos: comemos como eles, nos banhamos como eles, trocamos um pneu furado como eles, fazemos sexo como eles. Está impresso para sempre em nossas retinas e em nosso coração.

E, se não parecesse tanto uma cópia aqui descarada do belíssimo exemplar nacional O Filme da Minha Vida (2017), usaria o seu encapsulador título para coroar esse texto. No entanto, como não é um caso de plágio, mas sim de tropeços – sim, começo com um tropeço – inicio lembrando do quão infestados foram os anos 90 e início dos 2000 das comédias mais descaradamente baixas.

E uso o “baixas” aqui não como um julgamento de uma moral engessada que define de antemão o que é uma escala que vai do bom ao mau gosto em suas extremidade. Deixo o termo para definir aquele tipo de filme que tira o seu fator cômico de piadas ou infantis ou escatológicas e, muito geralmente, das duas características combinadas, tirando proveito do que há de mais básico quando o intuito é nos fazer rir.

Entre os muitos que poderiam ser citados, vou direto ao ponto e coloco sob os holofotes a série de filmes Austin Powers (1997, 1999, 2002). Uma paródia dos filmes de espionagem como James Bond dos anos 60 e 70 essas obras abusavam de cenas que puxavam para esse tipo de humor.

Há toda uma nostalgia na forma como essa trilogia é apresentada, nos figurinos, gírias, músicas e que são, na verdade, uma homenagem do ator Mike Myers, idealizador do projeto, ao seu pai e à influência que este teve em sua formação.

Mas o foco aqui é o humor, digamos “desconfortável” que permeia vastamente toda a sua duração. Em determinado momento, por exemplo, num laboratório de análises, o personagem título confunde um bule de café com um outro recipiente contendo amostras de fezes bastante liquefeitas retiradas de um vaso sanitário.

Ao servir-se na caneca, antes de beber ele ainda solta um “Esse café cheira a merd…” Bom, já deu pra entender por onde andavam nossas cabeças na década que, entre outras, nos deu o Nu Metal, a Banheira do Gugu e o clássico Cinderela Baiana (1998) estrelado pela loira do Tchan, Carla Perez.

Eis então que estou eu cantando em um show com a minha banda em um bar na Zona Leste. A bebida rolando solta e as pessoas se divertindo. Alguns casais. Muitos amigos e amigas (porque é assim que banda independente se mantém, tocando para pessoas conhecidas em sua maioria) e entre eles há uma garota que está visivelmente mais alterada que o todo (como ela havia conseguido chegar àquele nível era um mistério). E ela também me conhecia, já de um show anterior.

E aqui começa a meu pessoal momento de “comédia de humor baixo anos 90” – não olhe assim porque eu também tenho certeza que você tem o seu. Eis que as músicas vão se sucedendo e a coisa vai ficando cada vez mais animada, o local vai esquentando, eu vou tirando a roupa… o de praxe. A garota feliz da vida dança. Ensaiamos coreografias improvisadas ali durante algumas das músicas.

Dali a pouco estou cantando e percebo que ela vem voltando do banheiro. Começa a dançar comigo novamente. Ela bebe uma bebida vermelha. Parece Campari. Na outra mão segura um copo, pequeno, também com a bebida vermelha.

Dançamos e ela me oferece. Eu pego o copo e sinto que ele é plástico, meio emborrachado e talvez pense: “Cada bebida hoje em dia é um copo diferente, não se tem mais o que inventar”. Continuo dançando e tentando devolver o copo pra ela que, desbaratinada, sai rodopiando pelo bar sem me dar muita atenção. O copo não tem um fundo reto.

Não dá para apoiá-lo na mesa, e eu preciso voltar para o microfone e cantar. Resolvo virar de pronto todo o líquido do copo. Ela vendo faz uma cara de espantada e corre em minha direção dançando próxima a mim e eu ainda faço uma graça, dançando com ela e fico lambendo o fundo do copo, sorvendo até a última gota da bebida que, confesso, não tinha nada de álcool. Consigo finalmente entregar o copo a ela e volto correndo para o microfone… a música termina, o show segue.

Ao final, depois de tudo, já cumprimentando as pessoas que estavam por lá ela se aproxima. Um sorriso enorme, e me abraça efusivamente. Olha bem nos meus olhos, morde os lábios e lança, num misto de sensualidade e espanto:

– Nossa, você é doida mesmo! Tinham falado que você não batia bem da cabeça, mas eu não imaginava tanto! Só percebi depois que eu vi você no show tomando todo o meu copinho da menstruação.

Austin Powers, no filme, de fato bebe da caneca e, com um bigodinho a lá “Got Milk?” mais “bronzeado”, critica o gosto do café não sem antes declarar que tem um leve sabor de nozes. Por outro lado, eu, não consigo chegar a uma conclusão se me dei melhor ou pior que o fictício espião por não ter sentido gosto algum no meu “campari”.

Às amigas da luta pela igualdade de gênero: comparo aqui muito mais o ato e não as substâncias. You go, girls!

Texto: Lupe Romero – atriz, musicista, performer e escritora.

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