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EU SOU A FERNANDA TORRES

Fernanda Torres

EU SOU A FERNANDA TORRES

EU SOU A FERNANDA TORRES

Fernanda Torres teve Covid leve na mesma época que eu: dezembro de 2020. Mais uma coincidência a espelhar nossas biografias. Senão, vejamos: nossas mães nasceram no mesmo ano – 1929 – e continuam aí, firmes e fortes, embora a dela um pouco mais firme que a minha.

Nós também nascemos no mesmo ano – 1965 – e continuamos aí, fortes e firmes, tendo a arte como esteio. O meu primeiro texto publicado na imprensa, no jornal “Regional de São José do Rio Preto” – 1979 – foi uma crítica ao programa “Queridos Fantásticos Sábados”, exibido dentro da série “Aplauso”, que levava peças de teatro à TV, e que foi sua estreia na TV Globo.

Em uma de suas primeiras montagens teatrais – “Os Pequenos Burgueses” do Gorki – 1979 – eu estava na plateia, assim como depois estaria em “Inocência”, “Marvada Carne”, “Com licença, eu vou à luta”, “Capitalismo Selvagem”, “Eu sei que vou te amar”, “Redentor”, “Gêmeas”, “O Primeiro Dia”, “Terra Estrangeira”, “Saneamento Básico”, “Jogo de Cena”, “Kuarup”, “Beijo 2348/72“, “O Judeu”, “Traição”, “Os 8 Magníficos”, “Rei Lear”, “Orlando”, “5xComédia”, “Duas mulheres e um Cadáver”, “Da Gaivota”, “The Flash and Crash Days”, “O Império das Meias Verdades”, “Don Juan”.

Em 1998, nossos caminhos se cruzaram. Eu era roteirista e ela atriz do humorístico “Vida ao Vivo Show”, da TV Globo. A primeira vez que conversamos, no camarim do teatro onde o programa era gravado, o papo correu tão livre, que, por pouco, eu não solto comentário sobre um ex seu à época envolvido num boato de romance com outra famosa. Não acho que ela teria ficado constrangida, mas eu sim, e, por isso, engoli o assunto.

Durante algum tempo comparava nossas vidas e achava a dela muito mais interessante, sempre às voltas com viagens, festas, festivais, entrevistas, ensaios fotográficos, namoros, casamentos, novelas, peças, filmes, tendo a oportunidade de viver vários papéis, e eu confinado no meu.

Ser outro é uma ideia sedutora. Rimbaud tem um verso que se tornou célebre – JE EST UN AUTRE –, que tirado de contexto talvez não faça sentido. (Pesquisemos)

Hoje não tenho mais essa urgência de querer ser quem não sou. Já entendi o personagem, gosto da trama, dos cenários, dos figurinos, da trilha sonora, do elenco – o que não me salva de, vez por outra, espiar a vida alheia com gosto de quero mais.

Ontem mesmo, ao sair do prédio de minha mãe, observei um casal de mudança. O porteiro me disse que eles estão indo para uma casa grande com piscina a oito horas do Rio. Imaginei pássaros canoros de manhã e pôr-do-sol laranja envolto em silêncio e névoa, e fiquei com vontade de ser um deles, ou os dois, naquele carro grande e branco, mas logo a ideia foi substituída por outra e eu atravessei a rua.
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Ficou célebre também a resposta de Flaubert a respeito da criação de sua personagem maior Emma Bovary: “Bovary sou eu.”
O mundo é um teatro – como se diz numa peça de Shakespeare – e eu talvez esteja na plateia.

Texto: Rodrigo Murat é escritor

rodrigo murat

Imagem: Pedro Farkas – Reprodução

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