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REMIXANDO ORWELL

George Orwell

REMIXANDO ORWELL

REMIXANDO ORWELL

Na Inglaterra qualquer um é livre; todos vendemos a alma em público e a resgatamos de volta em particular, entre amigos. Mas mesmo uma amizade mal consegue existir quando cada homem branco é mais um dente da engrenagem do despotismo. A liberdade de expressão é impensável; todos os outros tipos de liberdade são consentidos. Você é livre para se tornar um bêbado, um ocioso, um covarde, uma pessoa traiçoeira, um fornicador renitente; mas não é livre para pensar por conta própria” (de “Dias de Birmânia”, 1934)

Vejo no feed da rede social postagem de “amigo” eufórico por ter participado da patriotada de domingo contra o isolamento social e a máscara, e em prol do presidente e do vírus. Entre curtidas contentes, uma voz se ergue nos comentários:
“Rapaz, eu não acredito que você tá do lado desse genocida. Agora você me decepcionou.”
Ao que o ufano rebate, com emojis:
“Decepcionado por que? Então eu não posso pensar do jeito que eu penso?”
Novas curtidas, e o mais contente de todos faz o resumo da ópera:
“Cara, você é o cara!”
Penso em dar a minha personal lacrada, mas recuo. O silêncio é, na maior parte das vezes, o elo mais eloquente.

Uma das diversões mais fáceis do mundo é desmistificar a democracia. Neste país, pouco se levam em conta os argumentos meramente reacionários contra o governo popular, mas nos últimos vinte anos a democracia “burguesa” foi atacada de forma bem mais sutil tanto por fascistas quanto por comunistas, e é muito significativo que esses aparentes inimigos tenham recorrido aos mesmos fundamentos nesses ataques.” (de “Fascismo e Democracia”, 1941)

Falou e disse, xará. Podemos chamá-lo de xará mesmo não sendo George, muito menos Orwell? É que somos iguais em desgraça e estamos aqui estupefatos, contemplando a mesma paisagem triste que você pintou na Guerra Fria. Será que estamos sendo rebobinados ou nunca saímos do lugar? Se existe uma terceira alternativa – aquela que diz que a História é linear e caminha pra frente – que cumpra-se o ditado e depois da tempestade venha a bonança. Tem sido assim desde que o mundo é mundo – não é, Noé? – por que agora seria diferente? Não somos uma geração que mereça esse desprivilegio.

Por mais que um dia seja possível estabelecer a verdade, os fatos são apresentados com tamanha desonestidade que podemos desculpar o homem comum, seja por engolir as mentiras, seja por não conseguir formar uma opinião. A incerteza generalizada diante do que está ocorrendo de fato torna mais fácil a adesão a crenças lunáticas. Uma vez que nada jamais é comprovado ou refutado, o fato mais inequívoco pode ser negado descaradamente. Além disso, embora sempre preocupado com o poder, a vitória, a derrota e a vingança, o nacionalista costuma exibir certa falta de interesse pelo que acontece no mundo real. O que ele quer mesmo é sentir que a sua própria entidade está sobrepujando outra entidade, e isso ele faz com mais facilidade ao ridicularizar o adversário, em vez de examinar os fatos para constatar se eles o apoiam.” (de Notes on Nationalism, 1945)

Ora, ora, Orwell. Diz-me com quem andas e eu te direi quem é Giordano Bruno. Sim, a Terra é redonda. Sim, ela gira ao sol. Estamos sem saber se rimos ou se choramos dessa tua distopia utópica. Para você ter uma ideia, ultimamente só se fala de você: gregos e troianos, bolsominions e trumpistas remixam suas ideias adaptando-as a seus interesses. O totalitarismo nunca foi tão relativizado – ou talvez tenha sido e esquecemos. No Brasil, fomos todos sequestrados. Um tarado de franjinha nos trancou em lockdown. Todo dia, como um Tântalo, abre a boca, aproxima a chave e ameaça engoli-la. Quem tem fé, ajoelha. Outros, desesperados, aglomeram-se em festas subterrâneas rindo de nervoso até amanhecer. Celebram em grupo porque sozinhos não conseguiriam. A vida sozinha exige raciocínio. Em grupo é mais fácil ser estúpido: um ratifica a estupidez do outro e morte que segue. Para nossa sorte, o mundo já foi avisado da situação e se movimenta para pagar o resgate. Uma imensa vaquinha mundial há de nos salvar desse BODE.
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Os textos em itálico são excertos do livro “Sobre a Verdade”, de George Orwell, editora Companhia das Letras, na tradução de Cláudio Alves Marcondes. Houve um único trecho “remixado” – a primeira frase do último excerto. No original está: “Por mais que um dia seja possível estabelecer a verdade, os fatos são apresentados com tanta desonestidade em quase todos os jornais que podemos desculpar o leitor comum, seja por engolir as mentiras, seja por não conseguir formar uma opinião”.

Texto: Rodrigo Murat é escritor

rodrigo murat

Imagem de Gordon Johnson por Pixabay 

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