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QUEM TEM MEDO DE LINA BO BARDI?

Lina Bo Bardi

QUEM TEM MEDO DE LINA BO BARDI?

QUEM TEM MEDO DE LINA BO BARDI?

No dia 29 de junho de 1984, foi inaugurada a exposição “Caipiras, Capiaus: Pau a Pique” no Sesc Fábrica Pompéia de São Paulo, na genial sacada da projetista e mentora do espaço: a arquiteta italiana naturalizada brasileira Lina Bo Bardi.

Um dos objetivos da mostra era denunciar o desaparecimento de valores da cultura rural, com a conversão de caipiras em boias-frias – esse arquétipo solapado do capitalismo – que Lina respeitosamente chamava de “aristocracia rural-popular brasileira.”

A exposição reunia objetos de moradores da Serra da Mantiqueira – MG – e do Vale do Ribeira – SP, e, para confeccionar o ambiente que reproduzia um vilarejo com bar, paiol, capela e casa típicas, foi trazido um casal humilde do bairro rural Pessegueiros do município de Extrema – MG.

No texto de apresentação, Lina escreveu: “O homem do povo sabe construir, é arquiteto por intuição, não erra; quando constrói uma casa a constrói para suprir as exigências de sua vida; a harmonia de suas construções é a harmonia natural das coisas não contaminadas pela cultura falsa, pela soberba e pelo dinheiro. (…) No fundo, aquilo que o homem do povo faz é malcriação. É malcriação com aquilo que os arquitetos de hoje fazem.”

Desde que chegou ao endereço onde funcionara a antiga Fábrica Nacional de Tambores Ltda. no bairro da Pompéia, Zona Oeste de São Paulo, Lina tomou conhecimento de que o lugar, desativado há algum tempo, vinha sendo usado pelos moradores locais como área informal de lazer com campeonatos de futebol e torneios de dança. Lina quis incorporar esse espírito ao que viria a ser o centro cultural ali construído sob a égide do Sesc. Lina achava que a unidade deveria abrigar atividades que refletissem o espírito daqueles que já o frequentavam, ratificando neles uma sensação de pertencimento.

Todas essas informações eu colhi da rica biografia escrita por Francesco Perrotta-Bosch para a Editora Todavia – “LINA”. Lina está na moda. Recentemente, recebeu um Leão de Ouro póstumo na Bienal de Arquitetura de Veneza pelo conjunto de sua obra. Na abertura do evento, esteve presente o secretário de cultura do nosso inculto governo que, coerentemente, nunca ouvira falar da homenageada. Que bom. Se houvesse, era capaz de ter sacado a arma do coldre e gritado:

– Comunista!

Lina, já a seu tempo, incomodava por suas posições políticas, muitas vezes contrárias aos interesses de parte da elite brasileira ávida de signos brancos europeus. Lina sabia comandar com rédea curta, voz altiva e apito um canteiro de obras com 200 homens, como se não fosse a delicada dama apreciadora de De Chirico – de quem seu pai foi amigo – e de Goya – de quem tinha uma tela na parede de sua casa de vidro do Morumbi. (Se não foram ainda, agendem visita. A Casa foi transformada em espaço público, e é um dos bons programas a se fazer em São Paulo.)

Como não sabemos falar dos outros sem falar de nós, esse apreço de Lina pela “gente simples” me fez lembrar que, no mesmo ano de 1984, eu dei aulas de alfabetização para adultos carentes numa escola pública ligada a uma diocese. Numa turma de aproximadamente trinta alunos, entre os homens havia boleiros, porteiros, garçons; as mulheres eram todas empregadas domésticas. Utilizávamos o método Paulo Freire – outro dos odiados desse atual governo revisionista.

Éramos um grupo de amigos voluntários mais ou menos despreparados que doavam quatro horas semanais de suas vidas para transmitir conhecimento pedagógico. Para nos aperfeiçoar na matéria, organizamos grupos de estudo para ler Freire e aprofundá-lo. Como de tudo que lemos e aprendemos guardamos duas ou três coisas, lembro da crítica que Freire fazia ao método de alfabetização calcado no alienante “vovô viu a uva”.

Freire, assim como Lina, queria trazer o homem simples para o centro do debate, garantindo o protagonismo a uma gente reiteradamente delegada à papel coadjuvante. São pensadores que incomodam, cutucam, subvertem o status quo, e por isso são tão temidos.

Nesse túnel sombrio que ora atravessamos, esses luminares do passado servem para dar a esperança de que nem tudo está perdido; de que a História é feita de idas e vindas, de tempos mortos que um dia ressuscitam.

Texto: Rodrigo Murat é escritor

rodrigo murat

Imagem: Lina Bo Bardi / André Vainer / Marcelo Ferraz / M.arcelo Suzuki / SESC

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