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O QUE QUEREMOS DIZER QUANDO DIZEMOS TUDO BEM

Elevador

O QUE QUEREMOS DIZER QUANDO DIZEMOS TUDO BEM

O QUE QUEREMOS DIZER QUANDO DIZEMOS TUDO BEM

O elevador para no terceiro, a vizinha num vestido abre a porta e me pergunta – de acordo com o novo código de convivência em tempos de pandemia:

– Posso entrar?

Como seria antipático de minha parte dizer-lhe não – sinceridade entre vizinhos é algo sempre delicado –, sinalizo:

– Por favor, fique à vontade, o elevador é todo seu.

Poderia ressalvar – caso quisesse incluir Ionesco na conversa:

– Só, por favor, não fale. Viajemos mudos para evitar aerossóis. Tudo bem que estamos de máscara N95, de costas um para o outro, e eu agachado e você na ponta dos pés, mas nunca se sabe as piruetas que uma variante asiática é capaz. Eu mesmo fui ao circo outro dia e fiquei impressionado com a sagacidade corporal de duas gêmeas contorcionistas de Bangkok.

Claro que se eu disparasse essa verborreia toda, o elevador chegaria ao térreo e eu seria obrigado a esticar o convívio corredor afora até a porta de saída. Opto então pelo protocolo:

– Tudo bem?

– Tudo bem – a vizinha me responde antes de pensar duas vezes e anexar – Quer dizer… tudo bem, bem mesmo nós só estaremos quando estivermos todos vacinados.

Faço “hum-hum” em bocca chiusa como a indicar que o ideal seria falarmos por onomatopeias.

O elevador chega e me despeço com um tchau acenado, grosseiramente passando à sua frente e deixando-a, de vestido, aos cuidados do porteiro de uniforme.

Sobrevém-me então a questão: o que exatamente queremos dizer quando dizemos tudo bem – esse termo suave e aparentemente inofensivo que já foi título de filme, peça e música? Será que alguém na vida já respondeu a um “tudo bem” de elevador com um “tudo péssimo”, mesmo que em nome da sinceridade crassa?

Voltemos ao elevador e a uma variante do diálogo – desta vez incluindo Beckett na conversa:

– Tudo bem?

– Tudo bem, quer dizer, tudo bem, bem mesmo nós só estaremos quando estivermos todos vacinados.

– Sim. O importante é que você está apta a responder “tudo bem” quando perguntada, como foi o caso agora. Veja, você poderia estar afônica; você poderia estar de cama, num quarto escuro com uma dor de cabeça incrível; você poderia estar depressiva e incapaz de encarar um “tudo bem” numa boa. Se você está aqui, de pé, apta a encarar esta pequena devassa na sua vida íntima numa boa é porque está, sim, tudo mais que bem; está tudo ótimo, e é assim que nós devemos encarar a questão.

– Não, meu caro vizinho do oitavo, aí você se engana. Se você tivesse me perguntado “Tudo ótimo”, eu jamais teria respondido “Tudo ótimo”, pelo simples fato de que não está nada ótimo. Minha mãe, com noventa, não sabe mais quem eu sou; minha filha, com trinta, sabe, mas me ignora; eu acabo de perder um processo na justiça; e, como se não bastasse, minha faxineira demitiu-se por áudio porque o marido bêbado trancou-a em casa não quer mais que ela saia.

– Não se preocupe, minha cara vizinha do terceiro, eu jamais teria a ousadia de lhe perguntar “Tudo ótimo”. “Tudo ótimo” é um braço de mar grande demais para o estreito aquário de um elevador com dois peixes apavorados com medo um do outro.

– E quem foi que disse que eu estou com medo de você? Se eu estivesse, não teria nem entrado.

– Pois eu estou. Morto de medo de você e de tudo o que sai da sua pessoa.

Nesta cena hipotética, a vizinha do terceiro talvez arrancasse a máscara e me cuspisse – o que, na atual conjuntura, seria o equivalente a um golpe de martelo.

Fico feliz que coisas desse tipo não precisem ser ditas entre vizinhos que dividem elevadores, e que já haja um roteiro prévio com as falas já escritas – Tudo bem, Hoje está calor, Parece que vai chover, Ontem havia nuvens, Amanhã falou-se em arco-íris etc. A vida seria muito cansativa se tivéssemos que escrevê-la o tempo todo com ideias originais. Assim fica “tudo bem”. Ou melhor, assim fica “tudo melhor”.

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“Tudo Bem”, filme de Arnaldo Jabor (1978); “Tudo Bem No Ano Que Vem”, peça de Bernard Slade (1975); “Tudo Bem, Tudo Bom??? Ou Mesmo Até”, música de Ronan Soares/Rubens Queiróz/Liminha (1977) gravada pelas Frenéticas e que diz na letra: “Prazer em conhecer/Somos as tais Frenéticas/e um anjo doido fez/A gente se encontrar no Dancin´Days/(…) Dizem até que não pensamos em pensar/Que somos aéticas/Mas deixa isso pra lá”

Texto: Rodrigo Murat é escritor

rodrigo murat

Imagem de StockSnap por Pixabay

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