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O CAMINHO DO BEM

O CAMINHO DO BEM

A Música, o Luzeiro e o Tempo – por Mirianês Zabot

Em 19 de junho, comemoramos o Dia do Cinema Brasileiro. Foi nessa data, no ano de 1898, que Affonso Segretto registrou as primeiras imagens em movimento, feitas no nosso País. Ele filmou a sua entrada na Baía de Guanabara, a bordo do navio Brésil, retornando da Europa, após fazer um curso de operação de cinematógrafos.

Desde então, passaram-se mais de 120 anos de produções cinematográficas brasileiras. Dentre as quais, está o filme Cidade de Deus, que rendeu ao Brasil quatro indicações ao Oscar e uma indicação ao Globo de Ouro, – além de outras premiações -, colocando o cinema nacional em um novo patamar. Lançado em 2002, com direção de Fernando Meirelles e com música original de Antônio Pinto e Ed Côrtes, é uma adaptação do livro homônimo de Paulo Lins, escritor que cresceu na Cidade de Deus, subúrbio do Rio de Janeiro.

O longa conta a história de dois meninos, moradores da Cidade de Deus: Buscapé e Dadinho. O primeiro sonhava ser fotógrafo e o outro, queria ser bandido. A narrativa se desenrola sob o olhar de Buscapé, que se depara com a oportunidade de tirar a foto que mudaria sua vida ou que o levaria à morte.

A trilha sonora tem um papel fundamental para nos ambientar nessa história, nos conduzindo a uma época na qual a vida, mesmo sendo dura e violenta, parecia ter mais poesia. Eram os anos 60, quando surgiu a Cidade de Deus, trazendo a promessa de um paraíso para diversas famílias, que haviam ficado sem moradia, após enchentes e incêndios criminosos em suas favelas de origem. O sonho, logo se transformou em uma nova favela carioca: sem água, luz, asfalto ou linhas de ônibus. Era um lugar esquecido, – onde o governo e os ricos jogavam o povo menos favorecido -, bem longe do cartão postal da cidade maravilhosa.

Citações instrumentais de canções icônicas aparecem, ao longo do filme, como que chamando nossa atenção para uma nova história, que começa a se desenrolar dentro da trama principal. Assim ocorre no breve romance entre Cabeleira e Berenice, que embalado pelo samba dolente “Preciso me Encontrar”, – composição de Candeia, eternizada na voz de Cartola em 1976 -, chega ao seu derradeiro e trágico fim, deixando sonhos por realizar, ao alvorar de mais um dia na Cidade de Deus.
“Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar…
Quero assistir ao sol nascer
Ver as águas dos rios correr
Ouvir os pássaros cantar
Eu quero nascer
Quero viver”

Aliás, “Alvorada” é o nome da belíssima composição de Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho, lançada em 1974, no primeiro disco de Cartola, – quando o músico tinha 65 anos de idade -, com produção de João Carlos Botezelli (Pelão). Esse samba ilustra, com muito lirismo e otimismo, o dia a dia na Cidade de Deus, fazendo um contraponto entre o amor do casal Cabeleira e Berenice e, as duras batidas policiais feitas na favela, em busca dos responsáveis por um roubo que acabou em chacina, impactando irremediavelmente a vida de vários personagens.
“Alvorada lá no morro
Que beleza
Ninguém chora
Não há tristeza
Ninguém sente dissabor”

O tempo foi passado e a trilha sonora seguiu tal cronológica. A Soul Music, à brasileira, de “Azul da Cor do Mar”, – lançada em 1970 pelo próprio compositor Tim Maia -, e “Na Rua, na Chuva, na Fazenda (Casinha de Sapê)”, – composta e interpretada por Hyldon em 1975 -, tocava nos Bailes Black que agitavam a favela nos anos 70, embalando romances adolescentes. Sucessos da Soul Music e do Funk americanos também batiam cartão nessas festas, com músicas como “Get Up (I Feel Like Being A) Sex Machine”, de James Brown, “Kung Fu Fighting”, de Carl Douglas e “Dance Across The Floor”, de Jimmy Bo Horne, lançadas em 1970, 74 e 78, respectivamente.

O filme mostra detalhes sobre o surgimento, funcionamento e leis do tráfico, bem como o dilema que jovens da comunidade enfrentavam: ganhar a vida honestamente ou pertencer ao mundo do crime. Porque, àquela altura, a Cidade de Deus já tinha um dono ditando as regras que a população deveria seguir. Ocorrem também as primeiras guerras entre gangues, ceifando a vida de crianças e outros inocentes, pelo objetivo de conquistar o domínio dos pontos de venda de drogas.

“Metamorfose Ambulante”, música de Raul Seixas lançada em 1973, ilustra o anseio por mudança interior e exterior, do traficante Bené que, a partir daquele momento, se apresenta como uma figura carismática na favela, – boa praça e com ares de playboy -. Ao contrário de seu sócio Zé Pequeno, – o Dadinho, lá do começo do filme -, que desde criança já tocava o terror e, com o tempo, se transformou em um violento traficante, profissionalizando o negócio do crime e levando à comunidade o comércio de drogas mais pesadas.

O hard rock “Hold Back The Water”, lançado em 1973 pelo grupo canadense Bachman-Turner Overdrive, apareceu na trilha para ilustrar que a vida na Cidade de Deus significava estar constantemente no fio da navalha. Um alegre baile, por exemplo, em instantes poderia se tornar uma tragédia.

A Cidade de Deus, que abarcava diferentes crenças, era também um purgatório na terra, onde a violência gerava mais violência, em infindáveis ciclos de vingança. Vejamos o caso de Zé Galinha: honesto ex-atirador do batalhão do exército, que só queria viver “O Caminho do Bem”. Após ter sua família brutalmente assassinada, ele entra para o universo do crime em busca de vingança, ao som de “Nem Vem Que Não Tem”, música de Carlos Imperial, lançada em 1967 por Wilson Simonal, inaugurando o movimento musical e cultural conhecido como Pilantragem.
“Pode aguardar
Que o mundo inteiro
Logo saberá
No Brasil primeiro
O caminho do bem”
O Caminho do Bem (composição de Beto Cajueiro, Serginho Trombone e Paulinho Guitarra, lançada por Tim Maia em 1976)

A única música não lançada na mesma época em que a trama se passa, é “Convites Para a Vida”, de Antônio Pinto, Seu Jorge, Edmilson Capelupi e Fabio Goes. Essa foi gravada especialmente para o longa, e aparece durante os créditos, na voz de Seu Jorge.

O filme Cidade de Deus, tem uma excelente trilha sonora, que além de traduzir os personagens e enriquecer a cena, dá representatividade a importantes movimentos musicais brasileiros, valorizando baluartes da nossa cultura. Músicas são registros socioculturais muito precisos de cada época, uma vez que explicam seu tempo e alertam sobre os tempos vindouros.

Por Mirianês Zabot
* Texto publicado em 21/06//20 na coluna “Ouvimos”, do Cine.RG

[ Site: www.mirianeszabot.com.br | Instagram: @mirianeszabot ] Facebook: Mirianês ZabotOficial

* Confira a música “Alvorada”, na voz de MIRIANÊS ZABOT, em seu show Gafieiras e Outras Verves (Baile de Gafieira): https://youtu.be/atmOJJTW0fo

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