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GAFANHOTOS, NEGACIONISTAS E OUTRAS NUVENS

nuvem de gafanhotos

GAFANHOTOS, NEGACIONISTAS E OUTRAS NUVENS

GAFANHOTOS, NEGACIONISTAS E OUTRAS NUVENS

Ninguém há de negar que 2020 está sendo um ano nublado. Se não literalmente – já que os dias de sol, incrementados pelo La Niña, seguem a pleno vapor –, metaforicamente.

Sim: no futuro, quando olharmos para esse calendário gris, entenderemos que tudo não passou de uma grande metáfora: o ano em que a Morte tentou roubar da Vida o papel principal, relegando-nos a elenco de apoio. E dá-lhe coadjuvação, máscara, fobia social e guerra de narrativa para deixar os cristais de gelo suspensos no ar ainda mais cúmulo nimbo.

No torvelinho de notícias cabulosas – entre verdadeiras, falsas ou tão-somente precipitadas –, lá pelas tantas surgiram as nuvens de gafanhotos, não menos assustadoras, mas enfim: em terra de vírus, quem tem um inseto é rei. Os tais chegariam em bandos sequiosos, arrasariam plantações e disturbariam cidades, mas parece que algo os deteve no Uruguai – memes chegaram a falar em nuvens de marijuana –, então eles foram substituídos por ciclones extratropicais, chuvas-pretas, incêndios-queimadas, bois-bombeiros, sítios-cativeiro, cuecas-cofre, atos antidemocráticos e demais patriotadas que vão nos empurrando para 2021 na esperança de que, ao chegarmos enfim ao ano-bom, algum maná nos seja ofertado – nem que seja a vacina.

Em meio aos raios e trovões – metafóricos, já se sabe –, eis que invadem a cena as nuvens de negacionistas, de peito estufado, adaptando slogans – “É PROIBIDO PERMITIR”, “BRASIL: ODEIE-O OU DEIXE-O” – e cantando a letra do hino do Osório em movimento retrógrado: “plácidas margens às Ipiranga do ouviram”. Não ouviram nada – em sua retórica surda – e de plácidos não têm nem as margens, nem o que elas margeiam, a saber: lama, lodo e chorume.

O ego individualizado dissolvido num eu-coletivo que o evento de uma pandemia suscita é uma ideia muito sofisticada para essa turba solipsista que nunca se dispôs a ser incomodada, e que não haveria agora de abrir mão do seu sagrado direito de colher o dia só porque um chinês inventou de engolir um pangolim. “Ora essa! Então nós tatuamos CARPE DIEM no braço e agora vamos ter de sacrificar um ano de curtição e balada porque a mulher do vizinho do concunhado do garçom que nós nem sabemos quem é pode pegar Covid? E será que ela já não ia pegar? Será que já não estava nos desígnios?” Para quem tem “Deus Acima De Tudo E De Todos”, não é preciso consciência pesada. Só terceirizar, que tá limpo.

Poderia, como li há pouco em Flaubert, desejar a essa gente “um Dilúvio para que eles possam navegar em seu tanque”. Mas de nada adiantaria. Eles continuariam a bradar – e agora contra mim, que lhes aponto o dedo. Melhor então lançar um olhar panorâmico sobre todas as coisas e perceber que assim caminha, caminhou e caminhará a Humanidade: a passos de formiga tentando desviar das pisadas.

Sejamos felizes, e que Deus – não acima, mas ao lado – possa nos dar uma mãozinha, um help, um like.

Rodrigo Murat é escritor e escreve no blog rodrigomurat.wordpress.com

rodrigo murat 

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