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A VOLTA AO MUNDO EM OITENTA QUARTOS

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A VOLTA AO MUNDO EM OITENTA QUARTOS

A VOLTA AO MUNDO EM OITENTA QUARTOS

Eis que o labirinto de súbito se empareda, e eu fico rodando em círculos dentro do meu quarto.

Tenho comigo um perfumoso livro – “Viagem ao Redor Do Meu Quarto”, de Xavier de Maistre – espécie de passaporte que me permite viajar de um canto a outro do pequeno cômodo sem ser incomodado. “Quando viajo ao redor do meu quarto, raramente sigo uma linha reta: saio da mesa em direção a um quadro deixado num canto; dali, parto obliquamente rumo à porta; mas por mais que, ao partir, minha intenção seja a de chegar ali, não faço cerimônia se encontro minha poltrona a meio caminho e nela me acomodo sem demora.” (Tradução de Veresa Moraes).

De Maistre nasceu em 1763, em Chambéry, à época pertencente ao reino da Sardenha. Em 1794, depois de participar como tenente da campanha militar contra as tropas revolucionárias francesas, ele se viu envolvido num duelo com
um oficial piemontês, o que lhe rendeu a punição de passar quarenta e dois dias recluso em seu quarto. Sobreveio daí a ideia de escrever o singular diário que, um século depois, seria uma das joias de cabeceira de Machado de Assis.

Enrique Vila-Matas, autor espanhol responsável pelo posfácio que acompanha a atual publicação da Editora 34, revela:

“No inverno passado, eu ia caminhando a passo rápido pelas animadas arcadas ao longo da via Po, em Turim. Fazia frio, e eu tentava me refugiar em algum café, quando alguém me disse que, no inverno de 1794, num quarto que dava para aquela rua antiga, Xavier de Maistre escrevera `Viagem ao Redor do meu Quarto`. Achei estranho que existisse um lugar físico em que fora escrito um livro que eu sempre lera como uma viagem exclusivamente mental.”

De Maistre convida o leitor a deambular mentalmente com ele por quarenta e dois breves capítulos. Um leitor “que não seja atormentado pela ambição ou pelo interesse, que prefira a sombra de uma árvore à pompa de uma
corte”. Ao longo da narrativa-passeio, vai descrevendo, sempre com requinte de detalhes, os móveis e objetos que o cercam.

Sobre a cama, filosofa: “móvel delicioso em que olvidamos, durante metade da vida, os dissabores da outra metade.” Fala da escrivaninha, dos quadros e dos espelhos “que devolvem aos olhos do espectador as rosas da juventude e as rugas da idade, sem caluniar
nem adular ninguém.”

Como não pensar em Júlio Verne e em seu romance “A Volta ao Mundo em 80 Dias”, que finalmente me dispus a ler neste ano de confinamento e onde pude encontrar, para além das aventuras de viagem, um retrato de personagem
basilar: Phileas Fogg, o tal gentleman inglês que aposta com seus pares do Reform Club a tal volta ao mundo em tempo recorde, é tudo o que precisamos ser para enfrentar os obstáculos que aparecem no caminho. Inabalável na boa conclusão de seu objetivo, ele ressalta: “Nunca deixo de prever a eventualidade de contratempos.” (Tradução: André Telles). É isso: viver é incluir no pacote as vicissitudes e os tempos mortos.

Joca Reiners Terron, autor cuiabano, que assina o prefácio da edição em capa dura da Editora Zahar, esmiúça dados da biografia do autor nascido em 1828 em Nantes:

“É lendária a tentativa de fuga do pequeno Júlio: aos onze anos de idade, embarcou secretamente como grumete no clíper de três mastros Coralie rumo às Índias, tencionando trazer de presente um colar de corais para sua prima
Caroline. A viagem foi interrompida logo na primeira parada pelo rio Loire abaixo, em Paimboeuf, onde seu pai o interceptou e o convenceu de que, para ser livre, a imaginação precisa vencer suplícios físicos bastante dolorosos. Após surra e castigo, Júlio descobriu que, ao menos por então, seria mais saudável viajar sem
sair do lugar.”

Como livro puxa livro, faz-se convidativo trocar de Júlio – Verne por Cortázar – e embarcar nos ensaios de “A Volta Ao Dia em Oitenta Mundos” divididos em dois volumes – promessa de leitura para 2021.

A viagem é infinita; a viagem – como o título de um livro de Vila-Matas – é vertical, vertiginosa, interior e irrepetível. Será que podemos parafrasear Heráclito e, ao invés de repetir que “nenhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio, pois na segunda vez o rio já não é o mesmo tampouco o homem”, dizer que “nenhum homem pode entrar duas vezes no mesmo aposento, pois na segunda vez o aposento não é o mesmo tampouco o homem?”

Olho para meu quarto e tento encontrar a resposta.

Rodrigo Murat é escritor e escreve no blog rodrigomurat.wordpress.com

rodrigo murat

Foto: pixabay

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