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A PROPÓSITO – KANIMAMBO

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A PROPÓSITO – KANIMAMBO

Kanimambo!

O nome dela é Muxima, significa coração em kimbundu (ou quimbundu), uma das línguas do tronco Bantu, um povo que habita a África subsaariana, e uma cidade na província de Luanda, capital de Angola.

Mas eu só soube disso muito tempo depois de conhecer a Muxima, uma grande amiga da primeira infância em Maputo, capital de Moçambique. Por isso a minha filha peluda se chama Muxima, homenagem a ela e a esses tempos em que se avistava liberdade no horizonte da humanidade.

Ela era angolana, loirinha, cabelo de corte Chanel com franjinha, do tipo atarracado, e morava meio longe da minha casa na Rua Nachingwea. Não sei como eu ia até o conjunto de prédios em que ela vivia, sei que era uma época de infância muito livre, crianças da rua, brincávamos de pular elástico, de pintar o rosto e o corpo com urucum, de jogar futebol, escalar muros, subir em telhados… Ela era minha amiga da rua e não da escola.

Aliás, eu e minha irmã tivemos que sair da escola pública basicamente porque éramos brancas e representávamos o povo colonizador, os portugueses que recém haviam sido ‘expulsos’ pela revolução da independência de Moçambique. Mas eu também não sabia disso, que eu era branca e tinha havido uma revolução naquele país. Entendi que algo sério tinha acontecido, porque tivemos que estudar numa escola em que só se falava inglês, as crianças eram de várias partes do mundo, e eu chorei muito no primeiro dia de aula porque só sabia falar bag e dog… A Miss Malambo, uma mulher doce e forte, minha primeira professora de verdade, foi quem me recebeu e suavizou os sustos daquele choque cultural. E mais uma vez me adaptei.

Creio que aprendi com a Muxima a solidariedade, embora a solidariedade seja um dom, quando uma garota me chamou para brigar e ela se ofereceu para brigarmos juntas. Essa garota era filha de portugueses, uma representação horrorosa do salazarismo, esnobe, preconceituosa e racista, coisas que vim a entender depois também. Sei que eu não gostava dela e ela muito menos, talvez porque eu fosse amiga de africanos, pretos e filhos de exilados políticos chilenos, argentinos, brasileiros… Nessa época até falávamos algumas palavras em xangana (ou changana), outra língua Bantu, e cantávamos músicas contra o regime sul-africano do apartheid. Éramos internacionalistas, sim.

Digo essas memórias entrecortadas porque novamente estamos vivendo o exílio, por questões de saúde pública, por situações de perseguição política, fora e dentro de nossas casas… E exílio é desterro e sofrimento.

E me vêm algumas palavras de Darcy Ribeiro, registradas na obra Confissões, quando nos embates contra a ditadura militar: “Os senhores se arrogaram novos poderes, ilimitados, simplesmente para fazer calar a oposição e para permanecer no governo sem dar contas a ninguém. Não são capazes, porém, de fazer nada com o poder que detêm, seja para afirmar a autonomia nacional contra a exploração estrangeira, seja para realizar uma política de reformas que abra ao Brasil perspectivas de elevação do padrão de vida do povo”.

(Kanimambo significa obrigado em xangana/changana, um agradecimento)

Texto: Palena Duran Alves de Lima (escritora)

Palena

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