a
© 1999-2022 Agência Difusão.
HomeArtigosA DIETA DO ABRAÇO

A DIETA DO ABRAÇO

abraços

A DIETA DO ABRAÇO

A DIETA DO ABRAÇO

A Q.U.A.R.E.N.T.E.N.A. completa um ano e alguns personagens se revelam em retratos 3×4:

Quitéria, quarenta e um, cabelereira sem filhos casada com um guarda civil negacionista que até tirar o sapato ao chegar em casa se recusa. Q. viu a situação se complicar quando o salão em que trabalhava fechou as portas e as clientes desaparecerem. Para não pirar e ainda garantir algum, começou a vender brownie. Descobriu que o de baunilha encalha, e que o de pistache é a coqueluche. Talvez no futuro abra lojinhas. Q. não abraça ninguém há um mês, quando foi à casa de sua mãe que fazia aniversário.

Ubirajara, setenta e oito, aposentado, viúvo, vive com dois cães schnauzers igualmente idosos que só saem de casa para as urgências fisiológicas e, mesmo assim, de máscara e sapatilha com o passeador avoado de focinheira no queixo. U. é o único do quarteirão que ainda assina jornal impresso, lido, por medida profilática, três dias depois de entregue. U. não abraça ninguém há setecentos e oito dias, desde que sua amorosa e delicada esposa expirou em seus braços.

Aretuza, trinta e nove, empregada doméstica, avó solo, vive com o filho de dezenove, a namorada deste de dezoito, e o filho de ambos de dois. Continuou a trabalhar normalmente, embora sem contato pele a pele com os patrões, recebendo ordens e broncas por áudio e torpedo. A. não abraça ninguém há doze horas, quando, antes de sair de casa, pegou no colo o neto que chorava.

Renato, vinte e sete, bailarino, enrolado, vive com a mãe, a avó e a tia num casarão gigante onde a prática de isolamento é amplamente factível. Não que sejam ricos, a casa é que grande por natureza, dos tempos em que havia espaço nas cidades e os arquitetos não eram obrigados a comprimir pessoas em retângulos-cubículos com terracinho-gourmet. R. iria estrear o seu primeiro espetáculo solo de dança – “Quem É Você Na Fila Do Pão?” – quando, de súbito, deu-se o BIG STOP. R. não há abraça ninguém desde ontem, quando foi visitado por uma de suas namoradas – a outra prometeu ir vê-lo amanhã.

Eliete, vinte e cinco, operadora de telemarketing, noiva, vive com os pais e um casal de irmãos – sendo que o homem, caçula, é adotado. Tem conversado mais ao telefone. Assinantes, que antes batiam com o aparelho em sua cara, agora puxam conversa e perguntam como ela está. Outro dia um se abriu e chegou a falar em suicídio. Ao que E. aconselhou: “Eu acho que o senhor não devia estar se suicidando. Tudo vai estar passando.” Ao que o triste rebateu: “Mas se tudo vai estar passando, vai estar restando o quê?” E. não soube o que dizer e, para não ficar muda, passou o número de protocolo. “O senhor quer estar anotando?” E. não abraça ninguém há uma semana, desde que dormiu com o noivo fuzileiro de conchinha.

Nuno, treze, estudante, vive com a mãe, o padrasto e um meio-irmão. Está tendo sua crise individual de adolescente eclipsada pela crise sanitária coletiva. Desde que deu-se o BIG STOP, N. não sabe o que é seu ou do mundo; se a angústia que sente vem da Aorta ou da China; se a constelação de acnes em sua testa é hormônio ou covid. Pensa em morar nos EUA, na Europa, na África, na Índia, em Qualquer Lugar Que Não Seja Aqui, mas não sabe quando isso será possível. Até lá vai arrastando uma existência emo. N. não abraça ninguém há trezentos e sessenta e um dias, quando recebeu de sua mãe uma tentativa de afeto mais do que depressa rechaçada.

Teca, trinta e sete, separada, mãe de gêmeos e passista de Escola. Desde o BIG STOP, trancou-se em casa num regime de engorda, trocando a sandália pelos embutidos, e em vez de miçanga, mortadela. Resgatou receitas do caderno culinário de sua avó baiana, e não é raro que às segundas comece com um caruru; às terças, vá de vatapá; às quartas, xinxim; às quintas, sarapatel; às sextas, mungunzá; chegando aos sábados completamente cansada e entupida. T. não julga estar depressiva – pelo contrário, tem arroubos de euforia que atribui ao dendê e à pimenta. T. não abraça ninguém há vinte dias quando, num transbordo de saudade, foi à casa do ex e pediu pra voltar.

Edmilson, quarenta, professor de Química do Ensino Médio, casado, pai de um filho de nove. Dedicou o tempo vago para dar aulas aos porteiros do prédio em que mora e aos das redondezas. Xerocou tabelas periódicas, distribuiu-as nas portarias, organizou pequenos grupos, e sempre que passa por algum novo aluno – na rua, no corredor ou na garagem – dá um jeito de inserir cobre, lítio e potássio nas conversas sobre política, futebol e mulher. E. não abraça ninguém há uma hora, quando, ao voltar a um dos colégios em que trabalha, reencontrou a professora de Biologia.

Nicole, vinte e dois, solteira, universitária de saco cheio com o BIG STOP, viciada em remédio pra emagrecer, transar & dormir. Depois de passar dois meses emburrada maratonando série no quarto da casa em que vive com os pais, a avó e o irmão, mandou tudo às favas e partiu para se aglomerar. Pegou covid leve, e por uma sorte dessas escritas nas estrelas, não espalhou pra parentalha. Perdeu olfato, paladar e tato – para lidar com os outros e com situações adversas. N. não abraça ninguém desde ontem, quando, num barzinho, encontrou-se com a turma do foda-se e seguiu com ela para uma balada pé de serra regada a álcool & sertanejo.

Aquiles, trinta e seis, solteiro, budista anacoreta, vive em isolamento há três anos na chácara abandonada de um tio rico e o BIG STOP não mudou-lhe um ai da rotina. Tenta passar a maior parte do tempo meditando, e, quando ajudado por beberagens místicas, tem mirações e fala com seres de outras galáxias. Já conversou com Gandhi, Michael Jackson e o ET do Spielberg. A. não abraça ninguém há mil e noventa e cinco dias, quando terminou com o namorado e fez voto de castidade.

Assim caminha a humanidade.

Texto: Rodrigo Murat é escritor

rodrigo murat

Imagem de Gerd Altmann por Pixabay

Share With:
Rate This Article

redacao@agenciadifusao.com.br