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ZÉ OU O DIA EM QUE EU FUI ATOR DO OFICINA

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ZÉ OU O DIA EM QUE EU FUI ATOR DO OFICINA

O ZÉ era uma figuraça. Provavelmente, se tivéssemos nos cruzado nessa longa jornada adentro chamada vida, nossos santos não teriam batido tanto assim, porque o ZÉ era espalhafatoso, dionisiaco, enquanto eu devo ser no máximo um apolíneo. Por essa razão, sempre procurei me manter a salvo dele na plateia de seus espetáculos para não ser estraçalhado. Se não me engano, era esse o adjetivo associado à prática das bacantes no espetáculo de mesmo nome que o ZÉ dirigiu. Espectadores eram arrastados para o palco a fim de serem “estraçalhados”. A coisa ganhou fama quando arrastaram o Caetano Veloso e o deixaram se não nu, quase. Adriana Calcanhotto até fez música inspirada no lance: “Vamos comer Caetano/Vamos devorá-lo/Pela frente/Pelo verso/Vamos comê-lo cru.”

A única vez que fui ao Oficina foi para ver “Mistérios Gozosos”, baseado na obra do Oswald, em plena segunda-feira de carnaval de 1992. Espetáculo longo – como costumam ser as montagens do Uzyna Uzona – com muitas cenas de nudez e orgia. O ZÉ sabia fazer a coisa fescenina sem cair no ridículo, sem deixar que o erotismo parecesse vulgar ou tacanho. Era, de fato, um culto ao bode, uma ode a Baco.

Antes, eu já tinha visto “As Boas”, com o Raul Cortez na pele da Madame, e o ZÉ e o Marcelo Drummond nas peles das boas. No caso, as criadas. É que o nome original da peça do Genet – Les Bonnes -, em tradução, dá “As Criadas”. Mas o ZÉ inventou de chamar a sua montagem de “As Boas”. Muito provavelmente pelo fato da palavra “boas” soar muito mais candente do que “criadas”.

Quando adentrávamos a arena do Centro Cultural Vergueiro, recebíamos das Boas flores para tacar na Madame quando ela entrasse. Então, o espetáculo começava, e lá pelas tantas, quando o Raul, de turbante, piteira, vestido e salto alto pisava o palco, o público se levantava e o cobria de flores e aplausos. Belo momento inesquecível que a chama do bom teatro não apaga.

Durante a temporada de “Hamlet”, no Parque Lage, Rio de Janeiro, em 1994, o Oficina organizou uma leitura dramática da então inédita “Cacilda!”, peça que o ZÉ escreveu sobre a vida de Cacilda Becker, no Centro Cultural Banco do Brasil. Fui assistir. Chegando lá, encontrei à roda de uma mesa, como numa sala de ensaio, os atores que iriam ler os papéis centrais. Entre eles, o Drummond, a Leona Cavali – que, à época, assinava Alleyona – e a Beth Goulart. O ZÉ não estava,e quem iria dirigir a leitura era o Drummond. Então, o Drummond começou a elencar pessoas do público para ler com os atores. Eu fui escolhido para ser o Venâncio – um primeiro namoradinho de juventude da Cacilda que desaparece ao fim do primeiro ato.

Tremi nas bases. Se hoje sou tímido, na época era anacoreta. A leitura começou. Tudo fluía do modo que se espera de um evento do Oficina. Os atores dando tudo de si, vozes esgarçadas, vísceras expostas, e eu ali, sequestrado por bacantes, roxo de vergonha, louco para que o Venâncio morresse logo. Saltava as páginas do texto para antever quando seria a minha próxima fala. A minha leitura branca – que é o nome que se dá a uma leitura sem inflexão dramática – planava pela sala, monocórdia. Em contraponto, cada vez que a Beth Goulart lia – se eu não me engano, ela era uma das irmãs da Cacilda, talvez a Cleyde – cada átomo do ar se crispava.
Lá pelas tantas, a rubrica: CACILDA E VENÂNCIO BEIJAM-SE APAIXONADAMENTE. É agora, Zé! Não pensei duas vezes. Em Roma, como os romanos. Levantei e beijei Leona na boca, tentando fazer a coisa toda ficar o mais próximo possível do APAIXONADAMENTE. Entendi o beijo técnico: duas bocas ocas se chocando uma contra a outra sem vestígio de saliva. Era como se não tivéssemos línguas. Bem, talvez se eu tivesse ousado, Leona tivesse sido mais zecélsica.

Venâncio morreu, o primeiro ato acabou, veio o intervalo. Aproveitei que Drummond e os demais não estavam prestando atenção e fugi à francesa, recolhido à minha insignificância de canastrão.

E é por isso que eu admiro tanto os atores e as atrizes. Pela capacidade que eles e elas têm de ser, estar, rir, chorar, gritar, espernear, ir até às últimas inconsequências de si mesmos sem preocupação com os outros.

ZÉ: toda a minha admiração a ti e ao homem de teatro que você foi, é, e será. Evoé e voe!

Rodrigo Murat é escritor
Rodrigo Murat
Imagem:Bruno Dulcetti
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