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ONDE QUERES CAETANO SOU VELOSO

Caetano Veloso

ONDE QUERES CAETANO SOU VELOSO

ONDE QUERES CAETANO SOU VELOSO

“Onde queres descanso sou desejo/onde sou só desejo queres não/onde pisas o chão minha alma salta/e ganha liberdade na amplidão”

Quando eu era pequeno, o meu apelido era Mano Caetano. Por que – não sei. Talvez porque eu achasse minha irmã parecida com a Maria Bethânia. O fato é que quando eu descobri que ela e ele – a Maria Bethânia e o Mano Caetano reais – eram irmãos, eu quase não pude acreditar. Eu devia achá-los ímpares demais para ser um par. Personas demais. Gentes demais saindo de uma mesma fonte. E viva Dona Canô e seu José!

Na minha casa não tinha discos de Caetano. Eu devia ouvi-lo no rádio. (Nossa, eu agora fiquei com 80 anos). O primeiro Caetano que eu comprei foi o “Outras Palavras”, de 79. No Natal do mesmo ano, ganhei de minha irmã o “Mel” da irmã baiana do irmão baiano, com o “Abelha rainha/faz de mim/o instrumento de tua voz” abrindo o Lado A, e o “A Queda d´Água ergueu-se à minha frente” fechando o B. Nessa época, os medalhões da MPB – desculpem-me a cafonice do termo, mas é como eles eram chamados – lançavam um disco por ano – dez a doze músicas por safra, cinco a seis de cada lado da bolacha. A graça era passar janeiro esperando março, e depois do carnaval passar, começar a recepcionar os novos long-plays de Gil, Gal, Chico, Rita, Simone, Elis, Djavan, Milton, Nana, Ney, Ivan, Marina, Ângela, Zizi, Elba, Fafá, Geraldo, Moraes, Alceu que iam saindo ao longo dos meses. Sempre amei ouvir música lendo as letras no encarte. Adoro encarte. Adoro capa. Adoro créditos – quem tocou o que em cada faixa, quem fez a arte, a fotografia, o figurino, a produção, os arranjos, para quem o disco é dedicado. Vem daí a minha resistência ao streaming. Música, para mim, é letra.

E até hoje eu sei de cor a de “Outras Palavras”: “Nada dessa cica de palavra triste em mim na boca/Travo trava mãe e papai alma buena dicha louca/Neca desse sono de nunca jamais nem never more/Sim dizer que sim pra Cilu pra Dedé pra Dadi e Dó/Crista do desejo o destino deslinda-se em beleza/ (…) “Parafins gatins alphaluz sexonhei la guerrapaz/ouraxé palávora driz okê cris expacial/projeitinho imanso ciumortevida vidavid/Lambetelho fruturo orgasmaravalha-me logun/Homenina nel paraís de felicidadania”

Lembro-me da primeira vez em que ouvi “Vaca Profana”, que o Caetano fez pro disco da Gal de 84. Havia uma loja num shopping chamada Hi-Fi onde o cliente podia levar os discos que quisesse para uma cabine individual com vitrola. A Gal tinha lançado o “Profana” com uma capa linda. Ela com o rosto coberto por pancake branco como um ator kabuki. Levei o disco pra cabine, tirei-o da capa e – entre um gordinho tatuado escutando o novo do Ramones e uma senhora com os braços ao alto celebrando as “Emoções” do Rei – pus a agulha no vinil. Quando começaram a soar os primeiros riffs de guitarra, senti-os à espinha como um arrepio. Na sequência, a voz da deusa de assombrosas tetas grudou-se a meus ouvidos como um chiclete: “Respeito muito minhas lágrimas/mas muito mais minha risada”.

Meses depois, de férias em Porto Seguro, esperando na orla o ônibus que me levaria até Coroa Vermelha, vejo sair de uma caixa de som fixada no alto de um poste, o mesmo riff de guitarra seguido da mesma assombrosa voz. Não acreditei! “Vaca Profana” tocando pra mim no meio da rua! Que Deus DJ é esse? Concluí:

“Estou num filme!”

Comecei a representar meu próprio papel como se uma câmera me filmasse e duplicasse minha imagem. Quando o ônibus chegou, fiz sinal e embarquei, com movimentos estudados, hiperconsciente de mim mesmo ao som da trilha sonora.

A música dá asas aos momentos mais rasteiros.

Caetano me ensinou o significado de “pletora”, “úvula”, “mote”, “glosa”, “alma que amalgamas”, “rambla”, “orchata de chufa si us plau”. Ensinou ao povo que “gente é pra brilhar/não pra morrer de fome”, que “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é” e que “de perto ninguém é normal”. Esse verso é ótimo, mas eu adoro também o seu reverso – de perto todo mundo é normal. De longe, a imagem embaça e dá margem a estereótipos.

Caetano é um camaleão veloso raptando cores, nomes; devolvendo às coisas o sentido retirado delas e fundando outros: “Flor do Lácio Sambódromo”, “Pluma Tela Pétala”, “E entre o meu ir e o do sol um aro, um elo”, “Para o homem: ouro/Para o anjo: azul”; Tatuou um Ganesh na coxa/chegou com a boca roxa de botox”, “Tropeçavas nos astros desastrada”, “Sempre um chão sob os pés mas longe do chão”, “As casas tão verde e rosa que vão passando ao nos ver passar”. Seu trabalho é nos traduzir. Vão passando os anos e ele não se perdeu. “Cinema transcendental/trilhos urbanos/Gal cantando Balancê”.

Há tempos atrás, eu queria ser seu amigo. Hoje, acho ótimo não sê-lo. Não ficaria à vontade. Não conseguiria ser eu, e, no afã de ser outro, acabaria por cometer ratas do tipo: “Sou mais Dedé que Paulinha”. Melhor assim como está: “Nós aqui e ele lá” – como no verso da música “Onde o Rio é Mais Baiano”.

Caetano, Chico, Gil, Roberto, Erasmo, Dorival, Gonzaga, Noel, Assis Valente – essa gente bronzeada que mostrou seu valor é o nosso verdadeiro Tesouro Nacional. Vão-se os pequis roídos, ficam-se os gênios. A Música Popular Brasileira é o Brasil que deu certo. O Brasil Pandeiro que abre a cortina do passado iluminando o futuro de través.

“A língua é minha pátria/e eu não tenho pátria/tenho mátria/e quero frátria”.

Texto: Rodrigo Murat é escritor

rodrigo murat

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