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CLARICE , LISPECTOR

mÁQUINA oLIVETTI

CLARICE , LISPECTOR

Nem sempre é fácil ler Clarice e por tantas vezes é extremamente prazeroso. Quando a descobri, nos meus verdes vinte anos, comecei a lê-la sem parar: um livro atrás do outro, como quem vai a um banquete, e gulosamente prova de tudo e acaba empapuçado. Queria então escrever como ela – achava que conhecia-lhe os truques, enxergando-os nas entrelinhas – e, quem sabe também, ser como ela – enigmático, austero, esquivo.

Comecei, se não me falha a memória cinquentona, pelos contos de “Laços de Família”, e a minha edição, de 1986 é aquela que tem na capa a imagem do “Le Rêve” do Picasso, onde uma mulher jaz de rosto inclinado, olhos fechados e busto cubista escapando do vestido. Encontro o volume na estante e vou até o conto “Amor”, assinalado no índice com asterisco, e com frases sublinhadas. “Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos.”

Depois acho que emendei com “Felicidade Clandestina”, também de contos, na edição de 1985. Devo ter lido grande parte na barca da Cantareira, pois morava no Rio e estudava Cinema em Niterói, aproveitando os vinte minutos de travessia para navegar com os olhos. “Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas.” Na capa, de autoria não creditada, há o desenho de uma menina deitada numa rede com um livro em mãos, a ler. No mesmo ano, ganhei de aniversário “Água Viva”, a breve ficção que começa com “É com uma alegria tão profunda” e termina com “O que te escrevo continua e pareço enfeitiçada”. Constava ser este um dos livros de cabeceira do cantor e compositor Cazuza, que de tão fã da autora, transformou-a em parceira musical, importando versos seus para a canção “Que o Deus Venha”, gravada por Cássia Eller em seu primeiro disco de 1990. Aquela que diz: “Sou inquieta, áspera e desesperançada. Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que eu não usei usar amor. Às vezes arranha feito farpa”.

Tenho ainda os romances “Perto do Coração Selvagem”, na edição de 1995, que tem na capa um recorte da tela “Nu Deitado” de Amedeo Modigliani; “A Paixão Segundo GH”, na edição de 1989, com capa bege contendo somente o título e o nome da escritora; “Sopro de Vida” e “A Hora da Estrela”. Folheio o primeiro, nada há de sublinhado. O leitor passou sem deixar rastros. No segundo, há: “Todo caso de loucura é que alguma coisa que voltou. Os possessos, eles não são possuídos pelo que vem, mas pelo que volta. Às vezes a vida volta.”

Às vezes, Clarice também me volta. Como agora, ao escrever este artigo, estimulado por uma exposição no Instituto Moreira Salles do Rio com fotos, frases e objetos pessoais seus – entre outros, as duas máquinas de escrever Olivetti – espalhados pelos cômodos da bela casa encravada no batimento cardíaco da floresta.

Lembro do Festival de cinema de Gramado de 1986, quando foi exibido o premiadíssimo “A Hora da Estrela”, adaptado por Alfredo Orós para Suzana Amaral. Marcélia Cartaxo tinha acabado de chegar de Berlim onde ganhara o prêmio de melhor atriz por sua Macabéa e desfilava incógnita pelo saguão do cinema-sede do festival, enquanto atrizes do segundo escalão da TV eram paparicadas pelo público e pelos fotógrafos. Resolvi então abordá-la e marcar uma entrevista – que ela, educadamente, aceitou. Então, no dia seguinte, à hora marcada, lá estava eu de bloquinho e caneta na varanda do hotel onde a estrela se hospedava. (Onde foi publicada a matéria, não faço ideia. Talvez eu tenha inventado uma pauta num jornal fictício só pelo prazer de passar um tempo maior com Marcélia-Macabéa.)

Tenho a sensação de que Clarice disse tudo e, como um Fernando Pessoa, destravou as portas dos segredos da alma humana, arejando-as para novos mistérios.

Se Clarice fosse um sinal, seria um ponto de interrogação, exclamação ou reticências? Talvez, uma vírgula, uma vírgula lispector, talhada no rosto da página em branco como uma ruga, um vinco.

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A literatura de Clarice quer o tempo todo dizer alguma coisa. Quase não existem frases de ligação – uma levando à outra num encadeamento lógico na ambição de ser parágrafo. É como se cada oração encerrasse em si própria princípio, meio e fim; ou princípio, meio e finalidade. O livro como um objeto útil, adaptado às angústias do leitor. Alta ajuda da melhor qualidade. E não é à toa que hoje CL circula nas redes sociais com suas frases de efeito e seus pensamentos mágicos iluminando os breus, dando novos tons de sombra ao anteriormente clareado, como nesta epígrafe de “Um Sopro de Vida”:

“Haverá um ano em que haverá um mês em que haverá uma semana em que haverá um dia em que haverá uma hora em que haverá um minuto em que haverá um segundo e dentro do segundo haverá o não tempo sagrado da morte transfigurada”

“Que mistérios tem Clarice/pra guardar-se assim tão triste/no coração”, como cantou Caetano.

Rodrigo Murat é escritor

Rodrigo Murat

Imagem de Andrea Polini por Pixabay

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