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CAPITU E O CAPÍTULO

Capitu

CAPITU E O CAPÍTULO

Sorri diante da beleza ao assistir ao filme “capitu e o capítulo” de Júlio Bressane, livre adaptação da obra “Dom Casmurro’ de Machado de Assis.

O título deste filme merece seu capítulo por ser recheado de possíveis significados. Logo de início, no capítulo primeiro, o autor de Dom Casmurro atribui o título do livro a outro autor, um poeta de encontro casual, nas idas do cotidiano, no trem da Central. Este poeta é quem dá o título à obra. Por que Dom Casmurro? Por que Capitu? É livre a escolha, autorizada pelo maior escritor brasileiro.

CAPITU deriva de Capitolina, feminino de Capitolino do latim Capitolium. Capitólio é o nome do Templo de Júpiter construído no ponto culminante de uma das sete colinas de Roma. Em sentido figurado é Glória e Triunfo. A forma Capitolium também se relaciona com a palavra cabeça, proveniente de caput.

Consta que Haroldo de Campos sugeriu que o capítulo é mais importante que Capitu. Importa dizer também que Haroldo de Campos é autor do projeto da poesia concreta.

A obra Dom Casmurro é visitada constantemente estabelecendo relações dialógicas tanto na própria literatura quanto fora dela. “Amor de Capitu”, de Fernando Sabino, faz a transposição da pessoa da narrativa. Antes dele, no cinema, Capitu de Paulo Cezar Saraceni e agora capitu e o capítulo, de Julio Bressane, título escrito em caixa baixa.

É a respeito desta obra de Bressane que pretendo agora tentar traçar linhas iniciais, uma vez que ela incorpora todos os elementos de uma profunda e atenta criação a partir da obra literária.

O adagio que inicia o filme, atribuído a Tomaso Albinoni, mas que parece dele ter vindo alguns fragmentos encontrados em manuscrito, é uma composição do musicólogo italiano Remo Giazzoto.

Inicia-se assim com a evocação da paixão. A vida é uma ópera. Deus é poesia e a música é do diabo. O Cinema é paixão. O que seria desta vida sem paixão? Primeira conexão entre a Capitu de Júlio Bressane e a Capitu de Paulo Cezar Saraceni a luz de Dom Casmurro de Machado de Assis.

Vemos em seguida dois chapéus lado a lado, cabeça a cabeça, cara a cara. Duas cartolas, pois estamos na segunda metade do século XIX. Infinito das paixões, o autor e o leitor – autor e personagem, elo, afeto. Sim e/ou não.

Apresenta-se o personagem:

– Chamam-me Casmurro. Não é esse o meu nome. É um apelido. Apelido que virou nome.
– Escrevo este livro…

Fusão de dois capítulos. A narração em primeira pessoa. O eu-narrante Casmurro.

Super Close dos olhos de Capitu. Segunda conexão, agora mais forte e definitiva. O cinema se conecta e conversa entre si. Dos olhos de ressaca de Capitu, vamos diretamente para o mar. Os olhos que nos puxam para dentro do mar. O mar que leva a saudade e encerra este primeiro canto do poema de Bressane.

Entramos na história.

A inscrição no muro feita por Capitu ganha nova roupagem.
Pela imagem refletida por um espelho gasto, estão Capitu e Bentinho.

– Você tem medo?

A evolução do filme é magistral. A mãe está presente no retrato. A intimidadora Capitu questiona. Bentinho é paixão.

Mesmo que o conceito da psicanálise ainda não houvesse ocupado o pensamento da época de Dom Casmurro – a interpretação dos Sonhos, de Freud, data também de 1900 – somos inclinados a pensar e expressar a relação mãe-filho à luz da nossa época.

José Dias é apresentado em discursos operísticos sendo que no decorrer das aparições, preenche algumas das marcas da literatura particular de Machado de Assis, entre as quais, a busca por novas formas de expressão e os espaços para a criação de inferências pelo leitor. Amaríssimo!

A composição das pinturas nas cenas pode vir da revelação de Bento sobre a ideia de que a concepção do livro veio das pinturas das paredes da sala, momento que coloca a fusão entre vozes autorais e narrativas: “Foi então que os bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contasse alguns.”

Os excertos de filmes anteriores de Bressane estão compostos na narrativa, como é o caso do baile, refilmado como no filme “O Anjo Nasceu” ou da biblioteca de “Cara a Cara’. O que mais impressiona é que tudo pode ser machadiano.

De forma muito breve há que se destacar ainda o conflito existencial de Bentinho, o eu-narrado, cujas fraturas começam a serem expostas ao ver o bebê no colo de Capitu.

– Seria dele o filho?

De volta o Adagio. Início da fragmentação do personagem. “As pernas desceram-me os três degraus”.

capitu e o capítulo é uma obra autoral em comunhão. Com todas as referências e autorreferências que poderiam sugerir uma fuga, isso não acontece, tudo está em harmonia com a obra original.

Cuidadoso e inventivo, o filme vai sendo preenchido com soluções narrativas singulares, tanto com fragmentos do livro, como com as recriações e, completo com os elementos que exaltam a literatura brasileira.

Júlio Bressane, seu canário é uma beleza.

Há muito para ser analisado. Por ora, deixo este ensaio inicial, muito inicial.

Renata Saraceni
Renata Saraceni

Imagem: Viviane D’Avila/Divulgação

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