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WARHOL E O OLHO

WARHOL E O OLHO

Sempre achei que o BBB – o show de realidade da Globo – tinha um Q de Andy Warhol. Até que, semana passada, sintonizando o programa no canal pay per view, deparei com um desses brothers musculosos e tatuados dormindo a sono solto para a câmera, “sendo ele mesmo” e “interpretando a si próprio”. Na mesma hora enviei mensagem a uma amiga:
– Tá passando um remake do “Sleep” na TV.

“Sleep” é um filme de Andy Warhol, realizado em 1964, que mostra, em um plano-sequência de cinco horas e vinte minutos de duração, um ator dormindo a sono solto para a câmera, “sendo ele mesmo” e “interpretando a si próprio”. Assisti, há anos atrás, na Cinemateca do MAM carioca, uma versão reduzida do extenso copião, e ainda me lembro do tédio criativo de assistir, durante aproximadamente meia hora, um sujeito dormindo na tela grande, tendo, como único ponto de variação temática, os movimentos de seu abdômen respirando.

Warhol disse em entrevista que fazia filmes sem trama, história ou personagem para que o espectador fosse ao cinema e pudesse pensar na vida sem ser importunado. Ainda mais radical que Godard, e nas linhas de Cage e Duchamp, ao deslocar o objeto artístico de sua órbita habitual, Warhol legou aos consumidores das culturas de massa, para além das sopas Campbell e da banana pop, o olho do Grande Irmão vitrificado.

Como roteirista, acho estimulante acompanhar um programa com ares de novela – muita paixonite, DR, ciúme e traição – onde os diálogos são confeccionados pelo próprio elenco. Só é pena que, em sua maioria, os atores/personagens sejam tão pouco interessantes, transformando o que poderia ser boa dramaturgia automática em amontoado de clichê. Será que pessoas com melhor conteúdo não dariam audiência, não atrairiam patrocinadores? Será que pessoas com algo a dizer não topam vender sua subjetividade ao diabo em troca de um milhão e meio de reais ou sei lá quantas toneladas de seguidores?

O meu BBB ideal teria no elenco: um padre, um candomblecista, um ex-político arrependido, uma ativista trans estudiosa de Paul B. Preciado, uma atriz consolidada no teatro que não deu certo na TV, um psiquiatra com TOC, um halterofilista fã do Mishima e leitor do “Sol e Aço” na tradução do Leminski, uma dona de casa mal-amada do bem e uma diretora-executiva bem-sucedida do mal – só para manter o nó górdio maniqueísta tão ao gosto do público.

Mas a verdade é que edição vai, edição vem, e a pasmaceira é a mesma. Este ano, ela está sendo turbinada por discussões lacradoras sobre os temas da moda, e termos como Emponderamento, Pauta, Lugar-de-Fala, Agenciamento, Desconstrução e Ressignificação pipocam de boca em boca, ganhando eco nas redes sociais. O devido maniqueísmo já foi estabelecido: o mocinho vítima de bulliyng pediu pra sair, está colhendo os frutos de sua fama torta aqui fora na vida real, enquanto lá dentro, na vida-simulacro, os vilões esperam a vez de serem emparedados e cuspidos aos leões.

Cancelar os canceladores – eis a nova ordem mundial. Odiar é preciso, dá tesão, e faz a vida parecer um game punitivo onde o bem vence o mal. Basta alguém escorregar no linóleo do próprio ego ensaboado, que os justiceiros de plantão, imbuídos sempre dos mais nobres sentimentos, sacam suas armas e atiram. Mas é preciso mais. É preciso que a cada semana os Judas se renovem, pois a sede de vingança é grande e linchamento pouco é bobagem. Ou parafraseando Sartre: o inferno são os outros, e os outros estão dentro de nós.

Warhol foi também aquele que disse que no futuro todos fariam sucesso por quinze minutos. É possível que alguns dos que estejam agora na “Casa Mais Vigiada Do Brasil”, provando de tal veneno amargo e efêmero, redimam-se e passem a ambicionar, de uma vez por todas, a penumbrosa solidez do anonimato.

Texto: Rodrigo Murat é escritor

Imagem de Hebi B. por Pixabay

Agência Difusão

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