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O CARNAVAL DA GRIPE

Imprensado entre uma onda e outra da pandemia de gripe espanhola – com as autoridades, como as de hoje, insistindo em chamar de marolas –, transcorreu o Carnaval carioca de 1919, de 1 a 4 de março, agora transcrito no livro “De Sonho e De Desgraça”, de David Butter (Mórula Editorial). O título saiu do “Poema de uma Quarta-Feira de Cinzas”, do livro “Carnaval”, de Manuel Bandeira.

“Entre a turba grosseira e fútil
Um Pierrot doloroso passa
Veste-o uma túnica inconsútil
Feita de sonho e de desgraça…”

O volume resgata personagens curiosos como Júlio Silva, que, até 1919, integrava a diretoria do Bloco da Baratinha, de Vila Isabel, bairro da Zona Norte do Rio. Ele era também conhecido como Lord Mamãe, numa época em que ter uma alcunha era de praxe. Pois no carnaval de 19, aos 24 anos de idade, Lord Mamãe criou o “Bloco do Eu Sozinho”, que desfilaria por seis décadas pelas ruas lotadas da cidade entre foliões em bloco.

“Até o carnaval de 1979, o homem-bloco seguiu uma receita: ia de palhaço tony, maquiado, com um estandarte improvisado de cabo de vassoura e uma placa de isopor erguida com o nome do bloco. Distribuía brindes: flâmulas, cartões e balas, que drenavam seu magro orçamento carnavalesco. Em meio à folia, recitava versos de Casemiro de Abreu e Castro Alves. Quanto mais celebrado ou provocado, mais crescia em vivacidade. Aos passantes, apresentava sua missão em verso:

“Eu ando só. Por companhia tenho
Minhas bugigangas, que me são leais.
Sozinho vivo bem, até convenho,
Feliz me corre a vida de rapaz.

Contas não dou. Se tarde ou cedo entro,
Reclamações do lar, não se me faz.
Contas não tenho, nem despacho empenho,
Se não de mim, por mim, e ninguém mais.

Entro à hora que quero, ou me é preciso
Saio à hora que entendo, ou me convém.
Se como, ou não como, passo vem.

Prefiro a vida assim, semi-isolado,
Melhor é andar sozinho (tenho siso),
Que em companhia de outro mascarado.”

Uma curiosidade vernacular: a origem da palavra micareta, o tal carnaval fora de época, é explicada neste parágrafo:
“Em 1919, não se realizou no Rio de Janeiro a Mi-Carême. Na forma original, a Mi-Carême era o nome da festa realizada na quinta-feira da terceira semana da Quaresma. No Brasil, a festa chegou com roupagem francesa e ar carnavalesco. Na Bahia, em Salvador, e, sobretudo, no interior, a festa pegou – inclusive fora da data determinada, desafrancesando-a e virando micareta.” (“De Sonho e de Desgraça”, David Butter)

A festa de carnaval, como hoje se conhece, engatinhava. Era o tempo dos ranchos, dos corsos e das sociedades, que desfilavam seus enredos com histórias tiradas dos jornais. O humor e a irreverência já davam a tônica, e a epidemia de gripe foi assunto contumaz. Era um carnaval-família, ainda que com suas licenciosidades. O livro é um deleite. É como andar pelas ruas de uma cidade que não existe mais.

Rodrigo Murat é escritor

Imagem:Pixabay

Agência Difusão

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