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MÚSICA PARA NADAR NO OCEANO

LADO A

​Despertei sábado com anos de atraso e, antes de me levantar, baixei o Spotify no celular como se estivesse apertado para ouvir música. Uma hora depois, já tinha duas play lists pré-organizados com canções que há anos quero ouvir “como se fossem minhas” e outras que o algoritmo indicou. A coisa funciona assim: você pesquisa PERA, o sistema entende que você gosta de UVA, e daí para MAÇÃ e SALADA MISTA são dois pulos.

Não sei porque levo tanto tempo para aderir a novidades. Quando o compact disc surgiu, continuei agarrado às bolachas de vinil. Meus amigos não entendiam, eu mesmo não entendia, e me justificava dizendo que as capas dos LPs eram maiores, e disso resultava um objeto quadrado mais bonito. Depois, os artistas começaram a lançar faixas extras nos CDS que não vinham nos LPS, e eu comecei a me sentir defasado. Até que em 1996, com uma década de delay, comprei o meu primeiro CD, me livrei da vitrola e dos LPS, vendendo-os a preço de banana sem saber que anos depois eles voltariam a ser valorizados. Tudo bem, eu estava mudando para um apartamento menor, e precisava me desfazer dos objetos quadrados bonitos. Guardei só alguns – os mais importantes – para servir de lembrança.

Passou-se então mais duas décadas até que chegasse a semana passada e eu começasse a não ver mais sentido na maneira com que vinha consumindo música. Recentemente, cheguei a comprar, num site, um CD raro do Vinícius por 115 reais, e agora, que estava prestes a adquirir um box com 3 CDS do Tom Zé, pensei: talvez seja hora de parar com o vício. Pesquisando, descobri que o TZ tem todos os discos no streaming, e que, muito mais interessante do que investir 129 reais em três disquinhos, seria ter a obra completa dele pelo preço de uma mini caixa de som bluetoofh.

Agora meu celular virou radinho de pilha. Levo-o para a cama, para o banho, para a cozinha enquanto lavo louça.

Desapegar-se de um hábito é difícil. Mas, quando vem a decisão, ela assoma com força como se estivesse represada. Faço a analogia de que ouvir música em LP, CD, K7 é como nadar num aquário, enquanto no streaming é como singrar oceanos. De uma braçada a outra, vai-se de Anitta a Rachmaninoff.

LADO B

Caetano está lançando disco novo. Em entrevista publicada no jornal O GLOBO de 02/10, perguntaram-lhe:

“Você se adaptou a essa nova lógica da indústria cultural agora que você está lançando um disco?”

A resposta:

“Eu não me adaptei. Eu fiz o disco sem saber de nada disso, sem pensar nem saber como é que ele ia ser lançado. Depois, quando fez a combinação de a Sony lançar, ela tem as estratégias dela com as plataformas de streaming. E terminei topando fazer o lançamento dentro da maneira que eles fazem.”

Caetano não tem nem celular, ou seja, comparado a ele, sou praticamente um nerd do Vale do Silício.

​O disco se chama “Meu Coco” e a “música de trabalho” – antigamente dava-se esse nome à canção escolhida para catapultar o disco – é “Anjos Tronchos”. Ouvi-a uma vez e confesso que achei-a meio troncha. Soou-me como fórmula repetida do que o baiano vem fazendo nos últimos tempos: o mesmo tipo de sonoridade, a mesma combinação baixo-guitarra, o mesmo canto triste, cansado, reflexivo, e letras que não vão muito além do que estão dizendo. Não acredito que nos anos 70/80, o baiano fosse capaz de lançar um trabalho chamado “Meu Coco”. Quem fez “Outras Palavras”, “Uns”, “Velô”, “Cores, Nomes”, “Muito”, “Joia”, “Qualquer Coisa”, talvez tenha esgotado sua cota de títulos geniais. Se bem que “Cê” é interessante – o título mais que o conteúdo – e “Abraçaço” é ótimo – o título tanto quanto o conteúdo.

​Todos esses grandes compositores do primeiro escalão da MPB – Caetano, Chico, Milton, Gil, Rita, Paulinho, Bosco, Benjor, Djavan, Roberto e Erasmo – já deram seu sangue. Cada um tem pelo menos cem músicas incríveis e escreveram a história da música popular deste país. Tudo bem, então, que agora estejam meio tronchos, vivendo e criando à sombra da obra construída. Se choraram ou se sorriram, o importante é que emoções nos deram.

Rodrigo Murat é escritor

Imagem de Bruno /Germany por Pixabay

Agência Difusão

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