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D.F.W. OU UM ANTÍDOTO CONTRA A SOLIDÃO

“A questão não é o que está dentro da sua cabeça, mas dentro do que a sua cabeça está.” (David Foster Wallace)
***
– Tô lendo o livro que reúne as entrevistas com o D.F.W., um dos grandes da literatura americana nascido em 1962, e que se suicidou em 2008 no auge de uma crise de depressão. Tô em dúvida agora se eu compro o catatau dele: INFINITE JEST/GRAÇA INFINITA, na tradução do Galindo. São 1.079 páginas. Tenho medo de comprar e ficar ansioso. Talvez se eu conseguir encarar como um livro pra vida toda, ou pelo menos para 2022, lendo com calma, indo e voltando, sem a pressa habitual de acabar, a coisa fique mais leve. Afinal, pra que ler trinta livros se “tudo” pode estar contido no mesmo? Eu acho que o autor que se mata de alguma forma escreve o próprio fim. O que não deixa de ser uma obra semipóstuma publicada no ato da escritura.
– Essa eu não entendi. Você diz o autor que se suicida?
– Sim. Do ponto de vista de quem agora o lê, a morte fica pairando como uma sombra que se projeta sobre o material escrito. Acho que ninguém consegue ler o sujeito – eu, pelo menos – sem lembrar que no fim daquele túnel todo haverá o final por enforcamento. O suicídio não deixa de ser uma morte artificial, provocada, e talvez por isso – numa leitura filosófica – algo literário, ficcional.
– É verdade. Mas é um ato cênico. O autor-ator.
Tive mais ou menos essa conversa – muita coisa foi acrescida aqui nesta transcrição – com uma amiga de SP. Impactado pelo livro UM ANTÍDOTO CONTRA A SOLIDÃO (Editora Âyiné), que reúne entrevistas com o escritor David Foster Wallace – que bom, o corretor de texto não sublinhou em vermelho o nome, sinal de que já o reconhece – resolvi partilhar com ela. O sujeito realmente diz coisas incríveis, e eu poderia encher esse espaço copiando parágrafos e mais parágrafos como um escriba pré-Gutemberg.

“A ficção trata do que que é ser a porra de um ser humano. Se você trabalha, como quase todo mundo, a partir da premissa de que há mais coisas nos Estados Unidos de hoje que tornam especialmente difícil ser uma criatura humana de verdade, então talvez metade da tarefa da ficção seja dramatizar o que é que torna isso tão difícil. (…) A parte interessante é entender por que estamos tão desesperados por este anestésico contra a solidão. Você não precisa pensar muito para entender que o nosso pavor tanto de relacionamentos quanto de solidão, sendo que os dois são subpavores do nosso pavor de ficarmos trancados dentro de um eu (um eu psíquico, não apenas um eu físico), tem a ver com a angústia da morte, o reconhecimento de que vamos morrer e que o resto do mundo vai continuar feliz da vida sem nós. Não sei se consigo te dar uma justificação teórica mas suspeito que grande parte da tarefa da verdadeira arte da ficção seja irritar essa sensação de confinamento e de solidão e morte nas pessoas, seja levar as pessoas a encarar isso, já que qualquer redenção humana possível requer que primeiro se encare o que é terrível, o que queremos negar.” (Excerto da entrevista concedida a Larry McCaffery, em 1993, na tradução de Sara Grünhagen e Caetano W. Galindo)
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​GRAÇA INFINITA tem 1.079 páginas, foi lançado nos Estados Unidos em 1996 e traduzido para o português em 2014. Catataus sempre me deixam com um estupor ingênuo: como alguém consegue escrever tanto, encaixar tantas ideias na malha justa da sintaxe? Porque não é só uma questão de “pôr pra fora” – inspiração + tempo livre + olha-só-como-eu-sou-inteligente – é preciso conhecer as regras da gramática e obedecer a elas, ou quebrá-las – o que dá no mesmo em termos de trabalho árduo: Sísifo rolando a pedra.
Então, para fugir do livro infinito à época de seu lançamento no Brasil – sem ficar longe do fato de que eu queria estar perto do sujeito – optei por comprar o FICANDO LONGE DO FATO DE JÁ ESTAR MEIO QUE LONGE DE TUDO, na tradução de Daniel Galera e Daniel Pellizzari. O livro, como consta na orelha, é uma antologia que reúne alguns dos melhores textos de não-ficção do autor.
Eis que, sete cabalísticos sete anos depois, crio coragem e compro o GRAÇA INFINITA pela internet. Chega em breve na minha portaria, para espanto dos porteiros:
– Outro livro, seu fulano?
– Pois é. Baita vício, né?
– Esse é grosso, hein? Dá um ótimo banquinho pra churrasco.
– Pode crer. Quando acabar de ler, te empresto.
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OS LIVROS QUE FIZERAM A CABEÇA DE D.F.W.:
“Historicamente, as coisas que me deram arrepios: a oração funeral de Sócrates, a poesia de John Donne, a poesia de Richard Crashaw, Shakespeare de vez em quando, ainda não tanto, os poemas curtos de Keats, Schopenhauer, as Meditações sobre filosofia primeira e o Discurso do método de Descartes, os Prolegômenos a qualquer metafísica futura do Kant, ainda que as traduções sejam horrorosas, As variedades da experimentação religiosa de William James, o Tractatus de Wittgenstein, o Retrato do artista quando jovem do Joyce, Hemingway – especialmente a parte italiana de In Our Time, que te dão aquela ereção no coração –, Flannery O`Connor, Cormac McCarthy, Don DeLillo, A.S. Byatt, Cynthia Ozick – os contos, especialmente um que se chama “Levitations” –, cerca de 25 por cento do tempo Pynchon. Donald Barthelme, sobretudo um conto chamado “O Balão”, que foi o primeiro conto que me fez querer ser escritor, Tobias Wolff, os melhores contos de Raymond Carver – os famosos mesmo. Steinbeck quando ele não está muito cheio de si, 35 por cento de Stephen Crane, Moby Dick, O grande Gatsby. E, Jesus amado, tem a poesia. Provavelmente Philip Larkin acima de todos, Louise Glück, Auden”. (Excerto da entrevista do autor concedida à Laura Miller em 1996 na tradução de Sara Grünhagen e Caetano W. Galindo)

Texto: Rodrigo Murat é escritor

Imagem: Marion Ettlinger

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